sábado, 28 de junho de 2008

O Príncipe Novo e o Poder Político-Militar n’O Príncipe de Maquiavel

Marco Antonio Facione Berbel


Resumo:

O presente trabalho tem por objetivo apresentar a importância do poder político-militar, tendo como foco de atenção os capítulos XII, XIII e XIV do príncipe.

Quando Maquiavel insere a questão do poder militar em suas reflexões, procura evidenciar sua necessidade, pois, tanto na conquista, como na manutenção de um Estado, o príncipe necessita fazer com que suas determinações e leis prevaleçam. Então, a partir desse momento, em que o príncipe deve colocar-se como sujeito de ação política, ele deve atentamente observar os melhores meios de fundar e conservar um Estado. Para tanto Maquiavel ressalta dizendo: “As fundações principais para todos os Estados, sejam novos, velhos ou mistos, são as boas leis e um bom exército”[1]. Dessa forma, procuraremos analisar como Maquiavel discute a importância do poder militar para efetivar essa conservação.
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Nos primeiros onze capítulos d’ O Príncipe, Maquiavel se detém na apresentação das formas pelas quais os principados podem ser conquistados e fundados, devotando especial atenção para os principados novos, segundo ele, “as verdadeiras dificuldades estão no principado novo”[2], pois neste o príncipe necessita passar dos primeiros passos negativos da conquista e fundação, nos quais, ele “é apenas um destruidor que quer impor sua lei” (Bignotto, 1994), para a positividade da conservação do poder. Seguindo esse itinerário, verificasse que em um primeiro momento o príncipe é um objeto estranho para o Estado, identificado como um usurpador, destruidor da ordem vigente, isso se deve ao fato do príncipe ter que destruir todas as antigas instituições do Estado, para estabelecer suas próprias. Para retirar de si esta imagem, ele necessita se fundir com o Estado através do estabelecimento de uma nova ordem, da qual ele seja o agente, efetivando com isso sua conquista. Entendendo que essa nova ordem (nuovi ordini), são as novas instituições que o príncipe deve determinar para regular o Estado, são elas: uma instituição que regule os humores do povo (populo) e dos nobres (grandi) como também possibilite a defesa do Estado, outra que estabeleça leis e impostos e por último uma que julgue a desavenças dentro do Estado.

Como foi dito acima, os problemas relativos a conquista e fundação do Estado são trabalhados, nos primeiros onze capítulos d' O Príncipe. Cabe então, efetuar uma pergunta: por que Maquiavel opta por trabalhar o que ele denomina como os principais alicerces de todos os Estados nos capítulos XII, XIII e XIV? Ora, nos primeiros capítulos ele procurou estabelecer os meios pelos quais os príncipes podem obter um Estado, sem com isso demonstrar de que forma esses podem atacar ou defender-se, assim o objetivo nos capítulos referidos será o de demonstrar como o príncipe deve proceder para oferecer ao Estado os melhores alicerces possíveis.

Segundo nosso autor, “os mais importantes alicerces de qualquer Estado, seja ele novo, velho ou ainda misto, são as boas leis e os bons exércitos”[3], são esses os sustentáculos dos Estados, a falta dos mesmos pode causar uma instabilidade, privando o príncipe de agir conforme a sua própria vontade. Isso porque, são esses dois pontos, as boas leis e o bom exército, que dá ao príncipe possibilidade de agir politicamente, sendo esses os fatores que oferecem a ele uma ação direta na esfera social, com os exércitos, que oferecem a base por meio da coerção às leis, e essas que devem ser cumpridas em nome da ordem. Sendo esses as principais bases de todos Estados, por que Maquiavel se abstém em falar das leis, dando preferência a argumentação com relação aos exércitos? Convém explicar esse raciocínio detalhadamente.

Maquiavel apresenta o seguinte raciocínio: “como não podem viger boas leis lá onde não existem bons exércitos, e porque onde há bons exércitos convém que vigorem boas leis (...)”[4]. Pode-se dividir esse argumento em duas partes: primeiro, em que é demonstrado que existe uma necessidade de antecipar a implantação do exército, deixando para instituir a lei em um momento posterior, isso porque o poder político-militar que apresenta o exército como exteriorização, demonstra-se como um fator do poder político, sendo ele que dá ao príncipe a capacidade de agir politicamente dentro do Estado. A falta do poder político-militar impossibilita o príncipe de fazer com que suas leis sejam cumpridas, sendo possível somente nos Estado onde a institucionalização dos exércitos é antecipada, antes desse momento o príncipe não tem a sua disposição uma base na qual ele possa se fundamentar, falta-lhe o alicerce para instituir algo realmente durável. Assim o estabelecimento das boas leis está atrelado de uma forma condicional ao poder político-militar, pois, enquanto não há exército, não há lei. Segundo ele, o caráter de necessidade para a determinação inicial do poder militar nasce da natureza mutável dos homens, que facilmente atentam contra o príncipe quando estão descontentes com ele. Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu são apontados como exemplos de ação política, por conseguirem pelo intermédio do poder político-militar, fazer com que suas leis fossem cumpridas.

Quando Maquiavel expõe a importância dos exércitos, configurado como um poder político-militar, oferece-lhe o estatuto de principal alicerce do novo Estado. Podemos ver essa importância, nos exemplos referidos no capítulo VI d’ O Príncipe, após a apresentação de grandes personagens históricos, que utilizaram o poder político-militar para fincarem seus domínios em bases sólidas, cita Hierão de Siracusa. A princípio, para um leitor descuidado, isto pode representar apenas um recurso estilístico, contudo, está sendo descrito algo muito mais importante. Nosso autor procura demonstrar ao leitor quão importante é a institucionalização do exército, porque não apenas repercutiu na história dos grandes homens, como também está presente em príncipes mais comuns como no caso de Hierão. Embora esses príncipes mais comuns não tenham a notoriedade dos grandes personagens históricos, fizeram o mais alto uso de sua virtù, assim sendo, é possível igualá-lo àqueles grandes exemplos, pois da mesma forma dependendo apenas de si, estabeleceram reinos.

As ações de Hierão de Siracusa devem ser vistas também como exemplo de virtù, sendo necessário analisá-las com cuidado. Quando ele assumiu o reino de Siracusa, extinguiu os exércitos antigos e procurou criar um novo que lhe fosse totalmente fiel. Assim, logo que um príncipe assume o Estado e não tem ao seu lado um exército que lhe seja fiel, nunca consegue edificar as bases do novo Estado, ficando a mercê da fortuna.Além do mais, como o exército corresponde ao poder político-militar, quem o detém está habilitado a requerer para si o poder do Estado, sendo capaz de subjugar até mesmo o príncipe, quando ele não tem o domínio total sobre o exército. Deste modo, é necessário ao príncipe comandar o exército pessoalmente, pois está é a melhor forma de proceder na instituição de uma base sólida, sobre a qual se levantará o edifício do novo Estado. Procedendo desse modo, não somente consegue se estabelecer como única autoridade dentro do Estado, como também torna-se admirado pelo povo por conseguir defendê-lo na adversidade.

Como o exército é o mais importante componente do poder político-militar, é adequado criar leis que forneçam ao príncipe a regulamentação do exército como também a do Estado, é importante dizer que a lei não se sobrepõe ao exército, mas é instrumento dele, sendo útil ao príncipe na obtenção do controle do exército, como também se demonstra útil ao exército na normalização da esfera pública. A utilização tanto do exército quanto da lei deve ser conduzida pelo príncipe de forma coordenada e uniforme, possibilitando-lhe uma ação política eficaz. Essa ação decorre da conjugação desses dois fatores à vontade dele, o exército demonstra-se como base, porque é dele o poder coercitivo que dá validade à lei por meio da força; quando o príncipe não o possui ou aquele que o possui não está subordinado a ele, instaura-se o caos, porque as leis do príncipe não se demonstraram efetivas, pois não há quem as faça cumprir com autoridade. É nessa medida, que a segunda parte do argumento maquiaveliano pode ser vista.

Diante disso, pode-se perguntar por que o poder político-militar é importante para a conservação e ação política? As principais preocupações do secretário florentino residem sobre a fundação e conquista do Estado, como também sobre sua preservação e defesa. Ora, faz-se necessário demonstrar como deve ocorrer a implantação do exército dentro do Estado, pois cabe a ele a indispensável função de preservação e defesa. Maquiavel procura identificar como os exércitos podem ser constituídos, faz isso procedendo de maneira negativa, ou seja, inicia pela enumeração dos tipos de exército que podem ser prejudiciais aos objetivos de manutenção do Estado, para posteriormente apresentar o exército que deve ser utilizado pelo príncipe. Podem ser indicados alguns pontos que corroboram para este tipo de procedimento. Primeiramente há uma necessidade de mostrar que o modelo comum de proceder nas questões militares se apresenta defasado, sendo essa a ruína da Itália, como também a instabilidade pela qual os príncipes passam em seus territórios. Em segundo lugar, tendo o exército um caráter de poder político-militar é necessário demonstrar as desvantagens que são causadas pelos exércitos que tem a guerra como ofício, para posteriormente mostrar como são vantajosos os exércitos que são formados dentro dos próprios Estados.

As análises efetuadas por Maquiavel com relação à natureza do poder militar advêm de dois fatores: primeiro por causa da influência que recebeu de suas observações, durante o período em que foi chanceler de Florença e posteriormente secretário de guerra do gonfonierre Soderine, onde viu uma Itália entregue a ação de tropas que se preocupavam muito mais com o soldo que era pago pelo príncipe, do que com a proteção desse que lhes pagava. Segundo alguns historiadores[5] esse problema era agravado ainda mais por causa da displicência dos príncipes no tratamento dos problemas militares. As observações efetuadas por Maquiavel durante esse período foram fundamentais para a formação de suas concepções com relação aos exércitos e como eles devem ser ordenadas. O segundo ponto advém precisamente da importância do poder político-militar, tanto para conquista e fundação como também para a conservação, “a negligência de um príncipe em se prover de defesas próprias mostra-se um erro que repercute não somente sobre as relações de força, como se poderia crer até aqui, como também sobre a política”(Ames, 2002), assim é necessário ao príncipe o máximo de cautela nos tramites desse exercício que é denominado por Maquiavel como a ‘arte da guerra’.

Acompanhando o percurso de Maquiavel, depara-se no segundo parágrafo do capítulo XII, com a apresentação da tipologia de milícias que podem ser usadas por um príncipe para defender seu Estado, “podem ser próprias ou mercenárias, auxiliares ou mistas”[6]. Mas, logo em seguida, afirma que as mercenárias e auxiliares são inúteis e perigosas, não garantem ao príncipe a estabilidade necessária para a conservação do poder, isso porque essas tropas não tem uma identificação direta com o Estado, visto que elas têm simplesmente como oficio a guerra, não sendo leais nem ao príncipe e nem ao Estado, para o qual são contratadas à defender. Assim, é necessário demonstrar os motivos dessa infidelidade e os prejuízos que essas tropas podem causar.

O autor começa pela elucidação dos problemas que são apresentados pelas tropas mercenárias, as quais são extremamente prejudiciais à estabilidade do príncipe sendo impossível permanecer seguro sob o abrigo dessas tropas. Isso decorre de alguns fatores, tais como a desunião, a ambição a falta de disciplina e a infidelidade perante ao príncipe. Porém, segundo ele, esses riscos podem ser expressos mais claramente com os capitães das tropas mercenárias, os quais podem ser classificados em excelentes homens de armas ou não. Os capitães que comandam exército e são excelentes comandantes, exercem papel de dominância perante os seus soldados, e como o exército representa o poder político-militar, esses capitães têm em mãos um fator de poder preponderante. O capitão de exército mercenário que não tem obrigações para com o seu contratante, ou melhor dizendo para com o príncipe, pode requerer para si o poder dele, assim é impossível confiar a eles a defesa do Estado, pois como aspiram à própria grandeza subjugam tanto o príncipe quanto o Estado. O príncipe acaba sendo oprimido por eles ou estes acabam oprimindo à outra pessoa contra a sua vontade, isto decorre do fato do príncipe ter que depender dessas tropas para sua defesa ou ataque. Caso o comandante do exército mercenário não seja um exímio homem de armas, provocará naturalmente a ruína do príncipe, pois sucumbirá ao primeiro ataque inimigo. Segundo Maquiavel, a única solução para afastar de si os problemas referentes às tropas mercenárias, consiste em o próprio príncipe ser comandante e senhor de suas tropas, pois isso lhe oferece domínio total sobre o exército, não correndo risco de ser surpreendido por ninguém que tente se impor por meio da força. Procedendo assim o príncipe afasta o perigo dos capitães mercenários que podem tentar subjugá-lo, como também as próprias milícias mercenárias que não oferecem a estabilidade ao príncipe, causando apenas danos.

Maquiavel procura identificar a relação que se estabelece entre o poder das armas, que devem ser próprias daquele que governa, com a paz que surge por esse exercício, cita Roma e Esparta como exemplo, pois elas só estiveram livres, porque tinham a seu favor armas próprias. Dessa forma, quando o príncipe detém sobre seu comando exércitos próprios tem a possibilidade de efetuar ações realmente concisas, pois não fica exposto a ambição dos capitães mercenários, muito menos as tropas que são infiéis e vis, isso se deve ao interesse dessas, pois tendo a guerra como ofício estão preocupadas única e exclusivamente com o soldo que é pago pelo príncipe, e tendo interesse apenas no soldo, nunca demonstram a fidelidade necessária para o príncipe implantar as novas instituições, que fornecem ao príncipe a normalização da esfera social, e ao povo a liberdade. Com os exércitos mercenários o príncipe sempre ficará exposto a fortuna, ou melhor dizendo, o príncipe que depende desses exércitos para sua defesa ou ataque não tem virtù, porque não consegue antecipar a infidelidade desses exércitos. A dependência dessas milícias causa não somente uma instabilidade ao príncipe, mas também sua ruína.

Nas análises de Maquiavel, insere-se também outro tipo de exército, os auxiliares. Embora esses exércitos sejam tão prejudiciais quanto os exércitos mercenários, eles apresentam algumas outras características que comprometem ainda mais as ações dos príncipes. Pode-se observar a preocupação do secretário florentino com esse tipo de exército já no capítulo III d’ O Príncipe, onde ele procura alertar o príncipe com relação à entrada de um estrangeiro tão forte quanto ele em seus domínios[7]. Disso decorre o seguinte fato: quando um príncipe chama a seu auxílio uma força exterior, que seja mais forte que a sua, ocorre que essa força auxiliar pode tentar subjugá-lo, requerendo para si o poder do príncipe. Esse gênero de exército auxiliar, além de não fornecer ao príncipe conquistas seguras, porque sempre requereram essas para si, pode ocasionar desastres ainda maiores, visto que esses exércitos por terem grandes poderes, podem galgar não só o território para o qual foram chamados a auxiliar, como também aos demais pertencentes ao príncipe, podendo com isso causar-lhe uma ruína muito maior. Conquanto esses problemas são apenas enunciados, a investigação pormenorizada deles é efetuada no capítulo XIII d’ O Príncipe.

Diz Maquiavel, “quem decidir que não quer vencer, valha-se dessas tropas [auxiliares]. São muito mais perigosas do que as mercenárias, pois, com elas a ruína é certa”[8]. Quando ele expôs o problema das milícias mercenárias, o principal foco de atenção residia na infidelidade, na desunião e na falta de vigor que elas demonstravam, isso impossibilitava o príncipe de efetuar ações que tivessem eficácia garantida. Com os exércitos auxiliares, o grande perigo é a virtù que eles demonstram, pois são extremamente unidos e fortes, sendo prejudiciais porque representam os interesses de outro soberano que não aquele pelo qual estão combatendo. Assim a partir do momento que conquistam uma vitória, o príncipe que as chamou se encontra em uma situação extremamente delicada, porque não tendo força suficiente para dissipar esses exércitos, acaba ficando prisioneiro da vontade daqueles que o comandam. Deste modo, como o exército representa o poder político-militar, essa atitude de chamar outros exércitos para atuarem em nome de um príncipe, pode lhe custar o comando soberano de seu território, ficando exposto ao domínio dessas tropas, pois eles obtêm o poder político-militar facilmente desalojam o príncipe e instituem o seu próprio governo. Conseqüentemente, qualquer vitória que se obtenha com exércitos auxiliares rapidamente se transforma em derrotas, porque as vitórias que se conquistam com armas de outros não são realmente vitórias e sim derrotas, porque sempre dependeram desses que o ajudaram a vencer.

A um terceiro caso de exército, os mistos. Estes exércitos são conjugados ao exército próprio, que não sendo forte o bastante para combater, tem necessidade de angariar mais força, embora o príncipe detenha o poder sobre parte do exército isso não é suficiente, pois sempre terá que partilhar o domínio do território com os que chamou, e como geralmente esses exércitos são mercenários, fica-se exposto a ambição dos mesmos. Dessa forma, o príncipe não detendo o comando total dos exércitos, não obtém o poder político-militar, pois precisa se submeter a outros para desempenhá-lo.

Segundo Maquiavel, a única medida que pode garantir ao príncipe domínio total do exército é fundá-lo no próprio Estado, não dependendo de mais ninguém além de si mesmo. Assim, o príncipe como líder político, deve ter segurança e domínio total da ação que empreende. Aqueles que a todo o momento recorrem a terceiros para fortalecer a própria ação política, não se demonstram dotados de virtù, pois não observam o mal ao nascer. O príncipe que é dotado de virtù ao contrário antecipa o mal, procura agir sozinho com suas próprias forças, pois esperando manter-se à frente do poder, cria seus próprios exércitos que são a base de todo Estado, através do qual o príncipe age com o poder político-militar. Dessa forma, “um príncipe não deve ter outro objetivo nem outro pensamento, nem praticar arte alguma fora a guerra”[9], pois é essa arte que dá ao príncipe não só o poder político-militar dentro do seu próprio Estado, como também a autonomia na sua ação, porque não depende de mais ninguém além de si mesmo. Quando um príncipe está desarmado, ele não pode obter respeito daqueles que se apresentam armados, ficando fragilizado a qualquer ação externa; um príncipe só obtém respeito tanto dentro quanto fora de seus domínios quando está munido de exércitos seus e atua no exercício da guerra. Como o príncipe pode agir na excussão da arte da guerra? Ora, o exercício da guerra depende muito mais dos tempos de paz, do que dos tempos de guerra.

Para nosso autor, existem dois tipos de exercícios que devem ser efetuados em tempos de paz para garantir ao príncipe, domínio total da arte da guerra e de suas tropas, são elas: os exercícios de campo, que são práticos e os exercícios com a mente, que dependem do estudo do príncipe. Convém analisar detalhadamente cada um desses exercícios, primeiramente o exercício de campo, serve tanto para manter os soldados do exército em forma e exercitados, como também se tem a possibilidade de conhecer o próprio território. Esse exercício aparentemente simples desempenha funções fundamentais na relação do príncipe com seus exércitos. A partir do momento que o príncipe está à frente dos exercícios de campo do exército, comprova sua perícia no trato da guerra, demonstrando aos seus soldados que ele é o único detentor do poder dentro do Estado, evitando que qualquer outro tente assumir o seu posto, reivindicando o poder para si. Como o exército é formado por cidadãos do próprio Estado, demonstra ao povo sua força, pois é ele que comanda pessoalmente o poder político-militar do exército. Com o próprio povo armado, ocorre uma identificação dele com o príncipe e com o Estado, promovendo com isso conquistas realmente concisas.

O príncipe que não observa essa relação de identificação entre povo e Estado, dificilmente matem-se à frente do poder. O príncipe quando fica instalado somente em seu palácio, e não se desloca por todo o seu território não se demonstra prudente, pois afasta de si algo que lhe é muito importante, a identificação do povo com o seu governante. O povo é peça fundamental na manutenção do poder do príncipe, “a um príncipe é necessário a amizade do povo, do contrário, não terá salvação na adversidade”[10], sendo somente o povo que pode dar ao príncipe a materialidade necessária para a manutenção do poder.

O exercício da arte militar com a mente deve se focar na leitura de livros de história e na reflexão da atitude dos grandes homens. Quando o príncipe se detém no exame detalhado dos procedimentos nos quais grandes personagens históricos obtiveram sucesso ou derrotas em sua empreitada na arte da guerra, pode procurar evitar os erros já cometidos e tomar como modelo àqueles que obtiveram sucesso. Maquiavel cita grandes personagens históricos que agiram tendo outros como exemplo, como é o caso de Alexandre o Grande que imitava Aquiles, César imitava Alexandre, Cipião imitava Ciro, etc., assim a melhor forma de proceder é procurar usar como espelho os que obtiveram vitórias, e agiam bem professando a arte da guerra.

Então, o príncipe que não observa a necessidade do exército que é o poder político-militar, bem como o encaminhamento da arte militar, pensando antes nos prazeres da vida, dificilmente se manterá à frente do poder, pois falta-lhe a base de ação política. Como Maquiavel disse, os Estados que não se apóiam em bases firmes, dificilmente se manterão em pé, pois como tudo na natureza que não tem raízes firmes perece, sendo a base do Estado o poder político-militar não se atentar ao seu desenvolvimento significa não construir aquilo que o sustenta, ficando exposto a fortuna.

Conclusão

Para concluir queria lançar uma pergunta: o poder militar é realmente importante para formação e manutenção de um Estado? Ora, pelo percurso aqui apresentado, parece pouco improvável que ele não desempenhe um papel de destaque na formação e manutenção de um Estado, visto que é dele que emana a base que dá sustentação ao governo. Sendo somente com a formação de um exército forte, que o príncipe tem a possibilidade de determinar o andamento da esfera social.

Conseqüentemente, sem o exército que representa o poder político-militar, dificilmente o príncipe se manterá à frente do poder. Para Maquiavel não é qualquer exército que representa o poder político-militar, mas apenas o exército que é próprio. Quando se depende de forças externas, tais como tropas mercenárias, auxiliares ou mistas para defender o Estado, dificilmente se evita a ruína, uma vez que se oferece aquilo que deve ser próprio dele - Estado - a outros. Portanto, é somente o exército próprio que representa o poder político-militar e sem ele, nenhum principado está seguro, dependendo exclusivamente da fortuna, visto que não tem a seu favor um exército que o defenda na adversidade. O armamento do povo garante ao príncipe total segurança, pois o povo vê na defesa da liberdade do Estado a sua própria defesa, o povo não sendo ameaçado e sim convocado a respaldar o governante, garante-lhe segurança e estabilidade. Ora, da negligência disso decorre instabilidade e inobservância da arte da guerra, pois de um príncipe só se espera isso.



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Bibliografia

Obras de Maquiavel:

MACHIAVELLI, Niccolò. Opere Politiche, cura di Mario Puppo, Firenze, Monnier, 1969.

______________, Nicolau. O Príncipe; [tradução Maria Lucia Cumo]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

Obras de Referência:

AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política. Cascavel: Edunioeste, 2002.

BIGNOTTO, Newton, Maquiavel Republicano.São Paulo: Loyola, 1994.

LERIVAILLE, Paul. A Itália no tempo de Maquiavel: Florença e Roma.[tradução Jônatas Batista Neto]. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

http://www.urutagua.uem.br/005/18pol_berbel.htm#_ftn11

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Algumas Questões Sobre as Guerrilhas no Brasil

Outubro de 1967

Com este trabalho queremos homenagear a memória do Comandante Che Guevara, cujo exemplo de Guerrilheiro Heróico perdurará pelos tempos e frutificará em toda a América Latina.
Carlos Marighella

A luta de guerrilhas, através da história, sempre foi um instrumento de libertação dos povos e a experiência provou, inúmeras vezes, quão importante é e que valor tem na mão dos explorados.

Além desta inapreciável importância, a guerrilha assumiu, nos dias de hoje, uma nova dimensão, ao lhe ser atribuído o papel estratégico decisivo na libertação dos povos. Quer dizer, a guerrilha incorporou-se definitivamente à vida dos povos como a própria estratégia de sua libertação, o caminho fundamental, e mesmo único, para expulsar o imperialismo e destruir as oligarquias, levando as massas ao poder.

Tal formulação do problema, como seja o do papel estratégico da guerrilha, não surgiu casualmente e sim porque a revolução cubana o introduziu no cenário da história.

Até então a experiência das revoluções de caráter marxista-leninista assentara suas bases na transformação da guerra antiimperialista mundial em guerra civil pela tomada do poder. Esta situação, com suas indispensáveis variantes, assinalou o desenvolvimento da história dos povos pelo menos durante quatro décadas, a partir do triunfo da Grande Revolução Socialista de Outubro.

A revolução cubana, como parte integrante da revolução socialista mundial, trouxe ao marxismo-leninismo um novo conceito: o da possibilidade de conquistar o poder através da guerra de guerrilhas, e expulsar o imperialismo quando não há guerra mundial e não se pode, portanto, transformá-la em guerra civil.

Esta contribuição teórica e prática da revolução cubana ao marxismo-leninismo elevou a um plano inteiramente novo a guerrilha, colocando-a na ordem-do-dia por toda parte, em especial na América Latina.

No Brasil este assunto é da maior atualidade e, por isso, apesar da vigilância e da repressão da ditadura militar que massacra nosso povo, em todo o país aumenta o interesse sobre a guerrilha e são discutidos os temas mais importantes.

Que há de fundamental e ao mesmo tempo de mais elementar nas guerrilhas no Brasil? Quais os problemas que nos chamam a atenção?

É uma visão geral desses problemas o que pretendemos apresentar a seguir, tomando como apoio a incipiente experiência brasileira sobre guerrilhas.

Aniquilar as Forças do Inimigo: Tarefa Fundamental da Guerrilha
O Brasil é um país de quase 90 milhões de habitantes, dispondo de uma imensa extensão territorial. Em área contínua, no mundo, só é superado pela União Soviética, a China e o Canadá.

As condições histórico-sociais e geográficas favorecem no Brasil – tal como aconteceu com a URSS e a China – o desencadeamento da revolução e sua vitória.

Em nossa maneira de pensar, a revolução no Brasil é a guerra revolucionária, em cujo centro se encontra a luta de guerrilhas.

A tarefa estratégica fundamental da guerrilha brasileira é a libertação do Brasil, com a expulsão do imperialismo dos Estados Unidos. Falando em termos de guerra, essa tarefa estratégica fundamental consiste em aniquilar as forças do inimigo, compreendendo-se como tal não só as forças militares do imperialismo dos Estados Unidos, como as forças militares convencionais dos "gorilas" brasileiros.

"Aniquilar" quer dizer tirar ao inimigo a capacidade de agir militarmente, destruindo e capturando suas armas e impossibilitando-o de prosseguir na guerra de manobras.

Quando se trata das forças militares dos "gorilas" brasileiros, "aniquilar" também quer dizer desgastá-las, esgotá-las, desmoralizá-las e separá-las, no final, das forças militares dos Estados Unidos, deixando os imperialistas sozinhos e as reacionárias forças armadas nacionais completamente destruídas. Sempre que os Estados Unidos estiverem acompanhados de forças militares "gorilas" de países latino-americanos, é necessário "aniquilar" o inimigo um a um e deixar os imperialistas combatendo isolados. Será este sempre o sentido em que empregamos o termo "aniquilar".

A Estratégia Global da Guerrilha
O imperialismo norte-americano adota uma estratégia global contra os povos e aplicará tal estratégia contra a guerrilha brasileira, que será combatida pelas forças militares dos Estados Unidos e seus títeres latino-americanos.

Responderemos com a mesma moeda, combatendo o imperialismo e sua estratégia global com uma estratégia global latino-americana.

A estratégia global da guerrilha, no Brasil, baseia-se no internacionalismo proletário dos revolucionários brasileiros e no seu elevado espírito de solidariedade aos povos que lutam de armas na mão.

Em conseqüência desse internacionalismo, um dos objetivos da estratégia global de nossa guerrilha é lutar para tornar efetiva a palavra de ordem de "criar dois, três... muitos Vietnãs".

Outro objetivo de nossa estratégia global é concretizar a solidariedade a Cuba através da luta armada em nosso país. A revolução cubana e Cuba socialista são vanguardas da revolução latino-americana, constituem nossos aliados fundamentais e nosso mais firme ponto-de-apoio em virtude de sua luta contra o imperialismo norte-americano, Para nós, é uma questão de princípio estar a favor da revolução cubana e encaminhar a guerrilha brasileira por uma estratégia global, capaz de criar obstáculos ao bloqueio e à posição agressiva dos Estados Unidos contra Cuba.

Nossa guerrilha visa, fundamentalmente, à conflagração de toda a América Latina. Quer dizer, trata-se de entrelaçar as guerrilhas dos países limítrofes, e de que os revolucionários dos países em luta se apoiem uns nos outros para o aniquilamento dos "gorilas" latino-americanos.

O imperialismo dos Estados Unidos, nosso inimigo comum, deverá ficar reduzido à situação de ver seus aliados destruídos e ter que lutar sem eles contra todos os povos latino-americanos.

A Ofensiva Estratégica como Principal Método de Condução da Guerrilha no Brasil
Nos países que estão em guerra regular com o inimigo e onde ocorrem guerrilhas, estas desempenham um papel de complemento da guerra regular em curso. Temos dois exemplos clássicos desse tipo, na Segunda Guerra Mundial, com os casos da URSS e da China.

Este não é o caso do Brasil atual, onde a guerra de guerrilhas não desempenha o papel de complemento de uma guerra regular, que não existe, não é para se desincumbir de uma missão tática, e sim para cumprir uma função estratégica.

O problema do Brasil é que as forças populares e revolucionárias sofreram uma derrota com o golpe de abril de 1964 e bateram em retirada com pesadas perdas.

Para livrar-se da ditadura e do imperialismo e de suas forças armadas de repressão, as forças populares e revolucionárias têm que sair da defensiva e passar à luta de guerrilhas, enfrentando o inimigo. Nesse caso, o principal método de condução da luta armada é a ofensiva estratégica.

O Brasil é um país de área continental e, por conseguinte, apropriado para a ofensiva estratégica da guerrilha, que precisa de espaço para mover-se.

A guerrilha brasileira tem que estar educada para operações móveis, desde as mais elementares até as mais complexas, pois uma guerra revolucionária prolongada no Brasil será uma guerra de movimento.

A ofensiva estratégica, como método principal de conduzir a luta armada, proporciona o máximo de iniciativa à guerrilha e uma liberdade de movimentos que não é permitida ao inimigo, lançado aos azares de uma perseguição interminável, em áreas rurais tremendamente hostis e desconhecidas.

Além disso, a diversidade de territórios e a variedade de ocupações da numerosa população do país possibilitam à guerrilha dispor de reservas estratégicas tais como: recursos em potencial humano amplamente reforçados pelos contingentes de operários e camponeses, recursos provindos das atividades dos trabalhadores rurais e recursos oriundos do potencial econômico das áreas urbanas.

Contando com tais reservas estratégicas e pugnando por objetivos políticos patrióticos, como a expulsão do imperialismo e a tomada do poder para a total libertação do país e sua radical transformação, a guerrilha brasileira tem na ofensiva estratégica um método invencível de condução da guerra revolucionária.

Evitar o Cerco Estratégico do Inimigo
Devido às condições históricas brasileiras, a concentração da superestrutura das classes dominantes e de suas forças repressivas se verifica na extensa faixa à margem do Atlântico, a região mais bem povoada do Brasil, de maior penetração do capitalismo, servida por modernas ferrovias e rodovias.

Esta é a região do cerco estratégico. Tal cerco ocorre por diversos fatores, dentre os quais destacamos os dois seguintes:

1. o inimigo tem suas tropas acampadas em toda a região litorânea, onde proliferam as relações capitalistas, com inumeráveis facilidades para comunicações e transportes, além dos recursos da técnica moderna;

2. o inimigo domina com suas forças militares o relevo norte-sul, bem como o mais importante sistema orográfico do país, projetado sobre o Atlântico, e erguido dentro da faixa litorânea, entre os maiores centros urbanos brasileiros.

A guerrilha brasileira deve evitar o confronto com a esmagadora superioridade do inimigo na faixa Atlântica, onde este tem suas forças concentradas. Se optar por esta solução, a guerrilha, mesmo que disponha de meios para instalar-se no sistema orográfico existente dentro da área inimiga, estará por sua própria iniciativa dentro das condições de um cerco estratégico.

Ao contrário, lançar a luta guerrilheira na área fora das condições do cerco é iniciar o caminho da ofensiva estratégica contra o inimigo, obrigando-o a deslocar-se da faixa litorânea para perseguir a guerrilha.

Tal situação permitirá o crescimento da ação das forças revolucionárias urbanas, que poderão cortar vias de abastecimento e comunicações, dificultar o transporte de tropas e intensificar o apoio logístico à guerrilha.

Assim, as conseqüências para as forças armadas convencionais serão desastrosas, não só por terem de combater fora do seu "habitat" natural, como porque se verão obrigadas a enfrentar o castigo das forças urbanas revolucionárias na retaguarda.

As Fases Fundamentais da Luta de Guerrilhas
A luta de guerrilhas não se desenvolve jamais de um só jato, isto é, desde quando se inicia até quando termina, com a vitória ou o fracasso. Pensar que isto pudesse ser assim significaria considerar a guerrilha como uma luta improvisada e arbitrária e não como uma luta de classes que se desenvolve segundo as leis da guerra.

Ainda que seja um prolongamento da política, a guerra tem suas leis específicas. Quando estamos em guerra, devemos saber que sua lei básica é a preservação de nossas próprias forças e o aniquilamento das forças do inimigo.

Nenhuma destas duas coisas pode se obter de uma só vez, e é obrigatoriamente necessário passar por um certo número de fases para atingir os objetivos previstos.

É por isso que o desenvolvimento da luta guerrilheira se processa por meio de fases distintas e bem características, interdependentes e relacionadas entre si.

Não se trata de fases determinadas arbitrariamente, mas presididas por leis inerentes à atividade consciente dos homens e das classes em luta. Essas leis têm traços comuns. O traço comum fundamental de qualquer delas consiste em sua subordinação total à lei básica da guerra: preservar nossas próprias forças e aniquilar as do inimigo.

Mas cada fase tem seus objetivos e suas particularidades e deve conter em si mesma os elementos e requisitos indispensáveis para a passagem à fase posterior.

Assim, na luta guerrilheira no Brasil distinguem-se três fases fundamentais.

A primeira é a do planejamento e preparação da guerrilha.

A segunda é a do lançamento e sobrevivência da guerrilha.

A terceira é a do crescimento da guerrilha e sua transformação em guerra de manobras.

O tempo de duração de todas ou de cada uma dessas fases não importa, como ensina a história, pois os povos que lutam pela libertação jamais se preocupam com o tempo de duração de sua luta.

Planejamento e Preparação da Guerrilha
Um dos requisitos básicos para a primeira fase da guerrilha é a existência de um pequeno núcleo de combatentes, surgido em condições histórico-sociais determinadas. Esse requisito constitui uma regra geral. Sua única exceção é em caso de guerra regular, quando a guerrilha preenche um papel tático, e o seu surgimento se dá por variadas maneiras.

O núcleo inicial de combatentes deve ser imune ao convencionalismo dos partidos políticos de esquerda tradicional e suas lideranças oportunistas, e ter condições para enfrentar e conduzir a luta ideológica e política contra o grupo de direita oposto ao caminho armado.

A luta ideológica deve ser levada ao conhecimento do povo com enorme audácia, confiança e amplitude, tendo em vista assegurar o apoio político e revolucionário das massas.

Deve ser exposto às massas com muita clareza o objetivo político da guerrilha, ou seja, a expulsão do imperialismo dos Estado Unidos e a destruição total da ditadura e suas forças militares, para, em consequência, estabelecer-se o poder do povo.

Não se deve, entretanto, empreender a guerrilha sem um plano estratégico e tático global, com base na realidade objetiva. Tal plano é necessário para que a guerrilha não venha a ser uma iniciativa isolada, desligada dos grandes objetivos patrióticos perseguidos por nosso povo, e sem a imprescindível visão do processo de aniquilamento das forças do inimigo.

Além do plano, a guerrilha requer preparação. Uma boa preparação começa com a seleção cuidadosa dos homens, que devem advir, isto é chegar depois, particularmente, do setor de operários e camponeses.

A preparação da guerrilha exige ainda o adestramento do combatente, sobretudo para o tiro e a marcha a pé, algumas armas e munições, a exploração do terreno, noções de sobrevivência e orientação, e a organização inicial de apoio logístico, incluindo a coleta de recursos de todos os tipo.

O que caracteriza o planejamento e a preparação da guerrilha é o segredo, a vigilância e a segurança mais absoluta, a proibição rigorosa do uso de papéis e cadernetas com nomes e endereços escritos, planos e apontamentos que podem vir a cair nas mãos do inimigo.

Sem esses cuidados, a primeira fase da guerrilha não tem condições de ir adiante.

Lançamento e Sobrevivência da Guerrilha
Apesar de que o inimigo no Brasil já está prevenido e reprime violentamente as tentativas de guerrilha, a primeira fase da luta guerrilheira ainda prossegue.

Quanto à Segunda fase, está é a do lançamento e sobrevivência da guerrilha, e se destina a converter uma situação política em situação militar.

Com esta segunda fase, as tarefas políticas convencionais propostas pelos direitistas, como sejam eleições, "frente ampla", luta pacífica, etc., caem no descrédito público. Surgem métodos de luta revolucionários e de apoio à guerrilha, com a finalidade de aniquilar as forças do inimigo.

Esta mudança é muito violenta e produz um impacto em todos os setores da luta.

O "gorilas" se defrontarão com uma situação militar, que procurarão resolver segundo os métodos convencionais do militarismo profissional. Estes métodos serão confrontados com os métodos não convencionais da guerrilha. A vitória será de quem melhor o emprego fizer da lei básica da guerra. Ou de quem tenha melhores condições no meio do povo para fazê-lo. A vitória será da guerrilha.

O lançamento da guerrilha deve constituir obrigatoriamente uma surpresa para o inimigo, como decorrência de dois fatores. Um deles é que, na segunda fase da luta de guerrilhas no Brasil, a forma principal das ações de combate consiste nas ações de surpresa e na emboscada. O outro é que o método principal de condição da luta de guerrilhas nesta fase reside na ofensiva, cujo papel decisivo se revela no aniquilamento das forças do inimigo.

Em matéria de formas de ação de combate e métodos de conduzir a luta armada, a derrota da guerrilha no ato de seu lançamento é produzida pelos seguintes erros:

a) não utilizar a surpresa contra o inimigo;

b) deixar-se surpreender pelo inimigo ou cair no seu cerco tático;

c) travar combates decisivos em pontos onde o inimigo, mesmo eventualmente, tenha superioridade;

d) começar a luta nas condições do cerco estratégico do inimigo e não ter plano estratégico e tático global, não conhecer o terreno e violar grosseiramente as leis da guerra.

Na maioria desses casos estão incursas as tentativas de guerrilhas fracassadas no Brasil, incluindo Caparaó.

Fatores de que Depende a Sobrevivência
Quando a guerrilha é lançada com êxito, o problema da sua sobrevivência passa a ter prioridade e uma importância fundamental e decisiva. A sobrevivência da guerrilha depende então:

a) dos seus objetivos políticos;

b) do método de condução da luta armada;

c) da estreita relação entre a guerrilha e o povo.

Quanto aos Objetivos Políticos
Nesse particular, os princípios são os seguintes:

a) procurar despertar o povo e particularmente os camponeses com a contínua presença dos combatentes guerrilheiros e a repercussão de sua ação política e revolucionária;

b) tornar conhecido do povo o objetivo político da guerrilha (a expulsão do imperialismo dos Estados Unidos e a destruição total da ditadura e suas forças "gorilas"). A guerrilha deve contar para isso com aparelhamento e organizações revolucionárias clandestinas, além de pontos de apoio em todo país.

Quanto aos Métodos de Condução da Luta Armada
Sob tal aspecto, são estes os princípios:

a) o princípio básico da guerrilha é partir de uma situação em que temos inferioridade e o nosso inimigo superioridade, e chegar a uma situação em que temos superioridade e o nosso inimigo inferioridade. Nesse caso não só as armas decidem. O fator decisivo mesmo é o homem, que maneja as armas e captura o inimigo. Se o decisivo fossem as armas, venceriam os "gorilas";

b) subordinar todas as ações de combate à lei básica da guerra, não se deixando aniquilar e aniquilando o inimigo nas variadas oportunidades, para crescer às suas custas e preservar as forças da guerrilha;

c) a ofensiva é o melhor meio de aniquilar o inimigo, porém jamais devemos esquecer o princípio de combinar a ofensiva e a retirada;

d) toda operação estratégica deve ser bem planificada para nunca nos determos a meio caminho;

e) o objetivo de nossa estratégia não é solucionar problemas econômicos no curso da guerra de guerrilhas, e sim aniquilar o inimigo. Daí por que jamais devemos ter bases fixas, ocupar ou defender territórios;

f) devemos deixar ao inimigo a tarefa de defender suas bases fixas e territórios ameaçados de incursão, ocupá-los ou recuperá-los. Isto põe o inimigo na defensiva, enquanto a guerrilha goza de liberdade de ação e iniciativa, desde que não se deixe aniquilar e preserve suas forças;

g) os combates, ações de surpresa, emboscadas e pequenas manobras táticas têm como objetivo principal capturar armas e munições;

h) além da extrema mobilidade, rapidez e decisão nas ações de combate, a norma de conduta da guerrilha é o permanente deslocamento, favorecido pela extensão continental do país e a diversidade das condições do terreno;

i) a guerrilha deve exercer severa vigilância e exigir rigoroso cumprimento das normas de segurança.

Quanto às Relações entre a Guerrilha e o Povo
Os princípios da sobrevivência aqui são os seguintes:

a) a guerrilha deve ter uma conduta honesta e leal, não fazer injustiças e dizer a verdade. Estimar, respeitar, ajudar o povo e jamais violentar os seus interesses;

b) a guerrilha deve viver e nutrir-se no meio dos camponeses, identificando-se com eles e respeitando seus costumes e religião. Explicar-lhes a natureza de classe do inimigo, o papel da guerrilha e o seu objetivo político. Organizar entre eles o trabalho de informação e o apoio logístico da guerrilha;

c) a guerrilha deve abster-se de aplicar qualquer método de banditismo, levar a efeito qualquer ato próprio de bandido ou juntar-se a eles.

Quando a Segunda fase da guerrilha é conduzida de tal modo que os erros são corrigidos no processo da luta, a estagnação e a passividade são abolidas e a sobrevivência da guerrilha fica assegurada; estão preenchidas as condições para a passagem à terceira fase.

O Crescimento da guerrilha e sua Transformação em Guerra de Manobras
A terceira fase da guerrilha é a última da guerra revolucionária.

É a fase do crescimento da guerrilha e sua transformação em guerra de manobras, a fase decisiva de aniquilamento do inimigo.

O desenvolvimento desta fase é impossível sem uma série de condições entre as quais se destacam:

a) o crescimento político da guerrilha;

b) o crescimento de sua potência de fogo;

c) o aparecimento da retaguarda;

d) a criação do exército revolucionário;

e) a mudança na forma principal das ações de combate.

O Crescimento Político da Guerrilha
Na terceira fase, o objetivo político da guerrilha passa a ser conhecido do povo, terminando a situação em que era conhecido apenas um círculo limitado de pessoas.

O objetivo político da guerrilha transforma-se, então, no mesmo objetivo de grandes massas do povo. Decorre daí o crescimento da autoridade política do comando da guerrilha. Seu trabalho ideológico se torna mais eficiente. As palavras-de-ordem da guerrilha passam a influir nas cidades. O comando total da luta se transfere para a guerrilha.

O Crescimento da Potência de Fogo da Guerrilha
Com o sucesso das formas de ações de combate da Segunda fase, a guerrilha passa a Ter novos tipos de armas. Melhora a qualidade do armamento. Pode dispor de mais animais de transporte, chegar à motorização e a operações com aviação. Melhora o serviço de comunicações e informações e de socorro médico. Consolida-se a rádio rebelde clandestina, cuja instalação pode fazer parte da fase anterior da luta. Aumenta a experiência da guerrilha. Seu heroísmo, perseverança e capacidade combativa se reforçam.

Todos estes fatores combinados determinam o aumento da potência de fogo da guerrilha.

Quando aumenta sua potência de fogo, a guerrilha deve aplicar os dois princípios seguintes, tendo em mira o aniquilamento do inimigo:

1 – Passar de uma situação sem muita capacidade de fogo para a situação de estender a linha de fogo.

2 – Aumentar o espírito combativo da guerrilha e fazer vacilar o espírito combativo do inimigo.

O Aparecimento da Retaguarda
A característica da guerrilha em suas duas fases anteriores é operar sem retaguarda e somente com pontos de apoio. O crescimento político da guerrilha lhe dá pontos de apoio coletivos e leva à criação de uma retaguarda.

Na fase final, a guerrilha brasileira dispõe de uma retaguarda interna e de uma retaguarda externa, esta última pelas forças dos países socialistas, as forças dos países do terceiro mundo e as forças progressistas do mundo capitalista.

A retaguarda interna da guerrilha brasileira será constituída por toda a área do apoio logístico e da luta complementar da guerrilha.

A guerrilha passará, assim, de uma situação sem retaguarda para uma situação em que terá retaguarda. Isto levará o apoio logístico a um avanço jamais atingido em qualquer fase anterior e, graças ao apoio do povo, o abastecimento da guerrilha se transformará num sistema regular de abastecimento.

Dispondo de retaguarda, a guerrilha terá em suas mãos reservas estratégicas que poderá, então, manejar em larga escala.

A Criação do Exército Revolucionário
Para que seja atingido o objetivo fundamental da guerrilha, é necessário criar o exército de origem guerrilheira, exército revolucionário capaz de aniquilar as forças armadas convencionais e de conduzir as massas à tomada do poder, destruindo o aparelho burocrático-militar do atual Estado brasileiro e substituindo-o pelo povo armado.

A criação de um exército dessa natureza é um princípio geral da revolução, princípio sobre o qual Lenin insistia, ao afirmar o seguinte:

"O exército revolucionário corresponde a uma necessidade porque os grandes problemas históricos só pdoem resolver-se pela força, e a organização da força é, na luta moderna, a organização militar" (Artigo publicado no "Proletari", em 1905, sob o título "Exército Revolucionário e o Governo Revolucionário").

No mesmo artigo, Lenin acrescenta:

"O governo revolucionário é necessário para assegurar a direção política das massas do povo".

Partindo do marco zero, a guerrilha possibilita a organização da força do povo, a princípio sob a forma de um pequeno núcleo de combatentes que se lança à luta, dentro de um plano estratégico e tático global. E, em seguida, sob a forma de um exército combatente, que nada tem a ver com o convencionalismo militar.

Uma das indispensáveis tarefas da estratégia da guerrilha no Brasil, é a criação desse exército genuinamente popular, que parte do nada e, através da guerra revolucionária, chega a uma organização militar capaz de praticar a guerra de manobras, vencer o inimigo, e, em consequência, conquistar o poder para o povo.

O crescimento da guerrilha em prestígio político, potência de fogo e apoio de massas produz modificações no curso da luta, atingindo a organização militar, os métodos de conduzir a guerra, as ações de combate e o emprego das forças da guerrilha.

A guerrilha dá um salto para a frente. E passa do tipo de organização de grupos guerrilheiros para o tipo de organização de um exército revolucionário. Mas um exército revolucionário não convencional, surgido da guerrilha, com base na alianã armada de operários e camponeses, aos quais se reunirão estudantes, intelectuais e outras forças da revolução brasileira.

Destacamentos, coluna e outras formas revolucionárias de organização militar constituirão o exército do povo que libertará o país.

A Mudança da Forma Principal das Ações de Combate
Na terceira fase da guerrilha, a forma principal das ações de combate são as ações de manobras e não mais as ações de surpresa da segunda fase.

Isto significa uma mudança de qualidade na luta de guerrilhas. Trata-se agora da transformação da guerrilha em guerra de manobras. É possível agora à guerrilha concentrar forças ou deslocá-las para aniquilar o inimigo e realizar operações de cerco e aniquilamento.

O método principal de conduzir a guerra de manobras continua sendo a ofensiva. Mais do que nunca, porém, nesta fase a guerrilha deve estar atenta a dois princípios:

1. Não somente avançar, mas também admitir a retirada.

2. Não expor as forças principais da guerrilha a um golpe inimigo de relevo na condução da luta ou no desfecho da guerra revolucionária.

A sorte da guerra se decide por suas ações de manobras. O inimigo, em inferioridade de forças, é obrigado a passar para a guerra de posições ou render-se e desintegrar-se, com o aniquilamento total.

O Núcleo Operário-Camponês e o Apoio do Povo - Segredo da Vitória
Quando se desencadeou o golpe de abril de 64, no Brasil, não houve resistência. O imperialismo norte-americano e os "gorilas" nacionais se aproveitaram disso e estão massacrando o nosso povo. Se fizermos a resistência, eles tentarão aniquilá-la, para que tenha prosseguimento a exploração do Brasil. Mas a resistência deve ser feita. A resistência do povo brasileiro é a guerrilha.

A guerrilha é para defender a causa dos pobres, dos humilhados e ofendidos, dos homens e mulheres de pés descalços. É para conquistar a libertação do Brasil, expulsar o imperialismo norte-americano, aniquilar a ditadura e suas forças armadas, derrubar seu poder, e instaurar o poder do povo.

Nossa guerrilha não tem base fixa. Sua base é o povo, é o homem brasileiro. Seu principal sustentáculo é o núcleo operário-camponês, a aliança armada de operários e camponeses brasileiros, que constituem a maioria da nação.

A guerrilha brasileira não ocupará terras nem adotará a tática de autodefesa dos camponeses, para não ter que defender territórios e bases fixas e desviar-se de sua rota de ofensiva estratégica, caindo na defensiva. A defensiva é a morte.

As dívidas dos camponeses serão canceladas. Os papéis e comprovantes de suas dívidas serão queimados. Os camponeses que ocupam terras, os arrendatários, os parceiros, posseiros que lutam contra os despejos, os assalariados agrícolas que queimam canaviais, os trabalhadores rurais que fazem greve no campo, lutam por suas reivindicações e são perseguidos pela polícia e o exército, por sua atividade organizando sindicatos, ligas camponesas e associações, podem ingressar na guerrilha e, dentro dela, prosseguir na luta pela revolução agrária, pelo aniquilamento do inimigo e a tomada do poder.

A guerrilha brasileira castigará os latifundiários norte-americanos que são donos de terra no Brasil e os latifundiários brasileiros contra-revolucionários, bem como os seus capangas e os que abusam das mulheres dos camponeses.

O que a guerrilha deve fazer é convulsionar o campo, levando aí a bandeira da luta armada.

A guerrilha brasileira incursionará nos povoados, mas só em defesa dos interesses do povo e em busca de seu apoio político e logístico. Para isso, formará secretos destacamentos armados da população local e organizará o povo sob formas revolucionárias.

A guerrilha brasileira será dotada de um espírito político avançado e progressista, guiando-se pelos princípios do marxismo leninismo, com o que conquistará o apoio do povo. O apoio da população deve existir para excluir a possibilidade de filtração de informação da guerrilha ao campo inimigo. A tarefa de eliminar os delatores será confiada ao povo.

A causa do inimigo é injusta. E ele sabe disso, pois tem consciência de que é um explorador. Ao ver-se acuado no campo pela guerrilha, o inimigo tornar-se-á mais cruel. Essa crueldade nos dará o apoio de milhões de pessoas. A guerrilha será o oposto da crueldade, dará um tratamento humano aos prisioneiros, os respeitará e socorrerá os feridos.

No seio do inimigo há muitos militares que individualmente apóiam o povo. Esses militares, no momento oportuno, devem desertar com suas armas e apetrechos e ingressar na guerrilha.

O fator decisivo da vitória da guerrilha está no apoio do povo, na confiança cega e absoluta nas massas. A guerrilha deve fazer a mobilização política do povo, uma ardente agitação no meio dele. Nos ombros de milhões de mulheres e homens do povo, particularmente entre a juventude, devem ser colocadas as tarefas de responsabilidade: coletar fundos, conseguir armas, munições, remédios, recursos de toda natureza, enviar combatentes e voluntários à guerrilha.

Para vencer é preciso unidade. O povo deve unir-se pela base, em suas organizações, e com isto chegar à unidade das forças populares e revolucionárias e jamais permitir o engodo das frentes burguesas do tipo "frente ampla".

O segredo da vitória é o povo.

Havana, Outubro de 1967.

Combate Irregular e Natureza da Estratégia:

O Caso da Subversão e Contra‑Subversão nas Guerras Peninsulares


Major Luís Fernando Machado Barroso


Introdução

Actualmente as forças armadas do ocidente tendem a focalizar as suas doutrinas em torno do fenómeno subversivo, em especial pelos desafios que as forças da NATO enfrentam no Afeganistão e as forças da coligação liderada pelos EUA enfrentam no Iraque. Em ambos casos o governo foi deposto pela força das armas da intervenção militar e os governos em função lidam com um fenómeno subversivo.

Também durante as guerras napoleónicas na Península Ibérica, as tropas do “Grand Armée” enfrentaram um fenómeno idêntico, levado a cabo essencialmente pela população da península, denominada por Lidell Hart como a “úlcera espanhola”1, cujo resultado redundou numa pesada derrota para Napoleão e com consequências devastadoras para o seu regime.

Jomini, que utilizou Napoleão como ponto de referência no seu imenso trabalho, afirmava no Précis 2 que “[…] Como militar, prefiro a guerra cavalheiresca e leal ao assassinato organizado […] de soldados isolados [em Espanha].3 Era um claro exemplo da aversão ao que Jomini denominava de “guerres nationales”.4

De facto, na sua tentativa de padronizar o fenómeno da guerra, Jomini deixou de fora as “guerres nationales”, porque aquelas eram uma luta, não entre forças regulares de dois oponentes, mas onde grande parte da população se sublevava contra o poder instituído.5

Será que as “guerres nationales” são diferentes das “guerras cavalhei­rescas”?

Nós achamos que não e seja qual for a tipologia de guerra ou conflito, a natureza da estratégia e da guerra mantém‑se. O que se modifica e é diferente, de acordo com a tipologia, é o modo como se combate. Não há “novas” guerras nem “velhas” guerras, há apenas guerras.

O foco da nossa análise é considerar o padrão napoleónico de combate regular em contradição com o modo como as tropas napoleónicas com­ba­teram a subversão em Portugal – combate irregular – fazendo sobressair dessa análise que, seja qual for a tipologia de guerra, a natureza da estratégia se mantém. Deixaremos de parte as considerações que poderiam ter levado ao sucesso das forças napoleónicas. Seriam porventura baseadas na escolha das modalidades de acção estratégica porque consideramos que o sucesso da estratégia depende da “ […] escolha. Depende da capacidade de compreender as situações e avaliar os perigos e oportunidades que estas contêm”.6

Utilizar a história como ferramenta para a estratégia é um exercício bastante complexo. Contudo, é um desafio aliciante devido à existência de acontecimentos únicos que podem ser analisados nas mais variadas perspectivas, desde que o seu produto seja a produção de conhecimento. “Se queremos deduzir uma arte da guerra de uma história da guerra – e isso é apenas o único caminho possível – não devemos minimizar o exemplo da história”.7

Utilizamos o exemplo da subversão na Península Ibérica por motivos óbvios: foi uma guerra conduzida no nosso território; foi decisiva para a derrota de Napoleão na Europa; foi uma guerra assimétrica do fraco contra o forte; temos tradição no combate contra‑subversivo; e a semelhança com a actualidade, de um lado a força militar hegemónica no campo de batalha e do outro uma população que é desperta para a subversão porque a invasão não trouxe nada de novo ao seu modo de vida.

O resultado pretendido com o trabalho não é o estabelecimento de uma teoria mas o estabelecimento de soluções práticas para os problemas que se deparam actualmente às forças militares. Com isto queremos dizer que o resultado esperado não é encontrar uma “receita” para o combate irregular – neste caso a luta contra‑subversiva – mas tão só evidenciar que é a instrumentalização da ameaça ou uso da força que preside à natureza da estratégia e que esta está ligada intimamente ao objecto da guerra.

Factores históricos, culturais, sociais e económicos moldam os conflitos irregulares. Não há dúvida que quem combate de modo irregular – o dissimétrico e o assimétrico – usa, em última instância, a força militar para alcançar os seus objectos políticos.8 “A guerra do guerrilheiro” é política e social, os seus meios são tão políticos como militares e a sua finalidade também. Por conseguinte, podemos parafrasear Clausewitz e afirmar que “o combate de guerrilha é a continuação da política por outros meios do conflito armado”.9

O recurso a Clausewitz como a referência principal para o trabalho prende‑se exclusivamente com a necessidade de escolher apenas uma teoria que englobe todos os aspectos da guerra e da estratégia.

Por conseguinte, o nosso argumento centraliza‑se em quatro pontos de referência. São eles:
1. A guerra e a estratégia são coisas diferentes e não têm influência na classificação das guerras. A sua classificação não afecta a sua natureza da estratégia. Não vale a pena adjectivar a guerra como “guerra nuclear”, “guerra de guerrilha” ou a estratégia de “estratégia terrestre” ou “estratégia subversiva”. As configurações que a guerra possa assumir e as ferramentas da estratégia não têm significado para a natureza da guerra ou da estratégia. Uma teoria da guerra e da estratégia como a oferecida por Clausewitz ou Sun Tzu10 tem aplicação universal. Por conseguinte, como os conceitos de estratégia e de guerra são universais e englobam todas as modalidades relevantes, uma teoria sobre guerra e estratégia deve explicar a “guerra regular” e a “guerra irregular”. Contudo o combate regular e o combate irregular são diferentes no modo de abordagem, mas não o são em termos estratégicos.
2. Definição de combate militar. Utilização do instrumento militar de forma violenta e planeada em que existe uma interacção física entre dois oponentes, sendo um deles uma força militar organizada, reconhecida como instrumento de uma autoridade de facto. Pelo menos um dos contendores tem os seguintes objectivos: Controlar um território ou população; evitar que o oponente controle um território ou população; dominar, destruir ou incapacitar o seu oponente.11
3. O estabelecimento da diferença entre combate regular e combate irregular. O primeiro abrange todo o tipo de operações entre contendores que são, em termos genéricos, simétricos – equipamento, modus operandi, valores. Por outro lado, o combate irregular, em comparação com o regular, abrange as acções de combate com meios assimétricos e caracteriza‑se pela mobilização de parte significativa da população.12 Estamos portanto num combate em ambiente subversivo. Queremos também fazer uma clara distinção entre guerra e luta ou combate. Estes dois conceitos são substancialmente diferentes e a sua diferen­ciação é fundamental para o nosso argumento. A guerra estabelece uma relação total com todos os instrumentos de coacção. O combate está relacio­nado com a conduta da guerra, normalmente por meios militares.
4. O modo napoleónico de fazer a guerra não estava adaptado ao combate com forças irregulares. Napoleão procurava sempre um combate decisivo que o levasse à destruição do exército adversário e à queda do governo desse Estado. Contudo, num combate irregular – subversão – não há uma batalha decisiva. Não interessa ser competente apenas no combate regular se o objectivo da política depende do sucesso do combate irregular.


1. A Natureza da Estratégia

Se não se funcionar ao nível estratégico, não importa ser‑se competente tacticamente ou ao nível operacional,13 porque não se persegue uma finali­dade política nesses empenhamentos. Clausewitz é muito claro na sua definição de estratégia e da sua relação com a política.14 “A Estratégia é a utilização da batalha como meio para atingir o objecto da guerra. Por conseguinte, o estrategista define um objectivo para a vertente operacional que por sua vez está de acordo com a finalidade da guerra. Em outras palavras, o estrategista traça o plano de guerra, no qual o objectivo determina as séries de acções tomadas como adequadas para a alcançar: de facto, o estrategista molda a campanha e, dentro desta, decide os empenhamentos.”15

O estrategista não pode estar preocupado com a conduta da guerra de forma regular ou irregular. A sua preocupação deve estar centralizada no modo como a sua conduta influencia o resultado do conflito. A excelência aos níveis operacional e táctico são necessariamente importantes, mas sem aplicação para os fins da política, acabam por ser qualidade perdida. De facto, a estratégia é uma ciência de fins.

Mas o que é a estratégia e qual a sua natureza? A resposta é composta da combinação de quatro atributos fundamentais.

O primeiro, baseado em Clausewitz, representa o facto de que a estratégia se relaciona com o uso da força ou a ameaça do seu uso em proveito da política. Esta definição acaba por ser uma adaptação da famosa frase de Clausewitz, que estabelece que a “estratégia é o emprego da batalha como meio para atingir o objecto da guerra”, porque a sua orientação parece ser focalizada no campo de batalha. Porém, se expandirmos o conceito de “emprego da batalha” para “emprego dos elementos de poder”, podemos desde logo admitir que a sua definição tem cabimento naquela adaptação.16 É necessário aqui referir a diferença entre a vontade (o querer) e as consequências. Estratégico não significa apenas muito importante. Nenhuma arma ou método é inerentemente estratégico, porque para o ser terá de ter efeito estratégico, ou seja, uma influência na política do adversário.

O segundo atributo é o facto de que a estratégia é a relação entre meios e fins (objectivos). Os objectivos representam o que deve ser alcançado e “Decorrem da consideração de interesses e são expressos em termos de estado final […] e limitados […] pelas capacidades e limitações dos instrumentos disponíveis.”17 Se a política se centraliza nos fins e o soldado nos meios, então a estratégia estabelece uma ponte entre ambos. Há aqui um tipo de relação contínua entre estes dois actores.

O terceiro atributo é a permanência da relação entre o político e o soldado. Se o soldado não consegue atingir o efeito que o político pretende ou as suas acções não têm efeitos políticos, então não se pode aplicar a máxima de Clausewitz de que “ [...] conduta da guerra, nas suas linhas gerais, é a própria política”.18

O quarto atributo, para o caso dos acontecimentos militares esvanecerem o foco da guerra, é o facto de que a guerra “é a continuação da política por outros meios”19. Devemos ter em consideração que a guerra não deve ser reconhecida como um “puro acto de força e de destruição”. Deste conceito simplista não devemos deduzir como lógico um encadeamento de conclusões que não se adaptam ao mundo real. Em vez disso devemos reconhecer que a guerra é um “acto não autónomo, um verdadeiro instru­mento político que não funciona por si mas que é controlado pelas mãos da política.”20

Porém, retemos como fundamental desta breve apreciação aos quatro atributos, a instrumentalização do uso da força ou da ameaça do seu uso.

Podemos desde já enunciar uma questão que é pertinente: Se a natureza da estratégia é tão simples, porque é tão difícil de executar?

Em primeiro lugar, a estratégia, pela sua natureza é extremamente difícil de executar.21 A estratégia estabelece a ligação entre o instrumento de coacção e a finalidade política. A perícia estratégica não é nem perícia militar nem sabedoria política. É a utilização da força militar para os fins da política.

No início das Guerras Napoleónicas havia o reconhecimento de uma complexidade crescente no âmbito da estratégia, para o qual Clausewitz alerta. É que não “é suficiente uma avaliação puramente militar num assunto da grande estratégia, nem uma solução puramente militar.”22 Esta preposição de Clausewitz é o resultado do reconhecimento de que a guerra não é um fenómeno independente, que é a continuação da política e como tal as principais opções de cada plano estratégico é “largamente política” por natureza.23

Assim sendo, quem é o perito na estratégia? Nem os militares nem os políticos são peritos em estratégia porque a excelência militar e a excelência política são competências muito afastadas da competência estratégica e pode nem haver relação directa entre a educação e a competência. Acima de tudo, pela definição, a competência estratégica requer o exercício de julgamento acerca da compreensão do ambiente estratégico,24 o qual é caracterizado por Clausewitz como o “reino do acaso”.25

Outra grande dificuldade que sobressai na dificuldade da execução da estratégia é a relação civil‑militar no âmbito da estratégia. Estes problemas são particularmente importantes em países democráticos. A teoria diz‑nos que a política e os meios militares devem estar muito próximos e se possível serem o mesmo, não esquecendo que é a política que orienta a estratégia. Contudo, os objectivos políticos a alcançar em tempo de paz e em tempo de guerra, devem ser escolhidos e periodicamente revistos de acordo com as capaci­dades militares. Clausewitz avisa que é necessário o conhecimento de assuntos militares àqueles que conduzem a política.26 A subordinação da guerra à política diz‑nos que a guerra é apenas o instrumento da política e não o contrário.27

Quando estamos perante um regime autoritário, em que o político é também o generalíssimo, a estratégia anda de mãos dadas com a política e confunde‑se mesmo com ela, dando um cunho de unidade vincada. Porém, há sempre o perigo de ser a política a servir a guerra e ser a estratégia a conduzir a política. Um problema quando o chefe de estado passa a cometer erros.

A terceira razão prende‑se com a proporcionalidade directa entre o sucesso militar e o objectivo político pretendido. Será que o soldado sabe quando á que as suas acções têm uma real influência política e estratégica? Inimigos capturados, cidades “pacificadas”, estradas reabertas e diminuição de ataques bombistas contam‑se como acções da nossa preferência. Porém, as acções não são um fim em si mesmo. É necessário saber qual o contributo do comportamento do militar para a finalidade política do empreendimento. Não se pode declarar o triunfo estratégico quando se é alcançada a vitória militar.

Outra razão para a dificuldade da execução da estratégia está relacionada com o comportamento do adversário, que é inteligente e independente no comportamento. Devido às exigências que um inimigo coloca, seja regular ou irregular, a necessidade militar pode compelir a comportamentos que não são desejáveis ao nível político.

Por fim, a fricção é um outro factor que contribui para a dificuldade da acção estratégica. “Tudo é muito simples na guerra, mas até o mais simples é difícil. As dificuldades acumulam‑se e produzem fricção […]”28 Isto quer dizer que o perigo, a incerteza e o acaso são capazes de frustrar qualquer plano de campanha. Espera‑se que tudo corra mal e a estratégia mais adequada é aquela que é tolerante com as surpresas desagradáveis. A adaptabilidade deve ser vista como um factor essencial na acção estratégica.


2. Do Combate Regular: o Modelo Napoleónico

O falhanço do controlo do Canal pela armada francesa (1805) livrou os ingleses duma invasão do seu território, obrigando Napoleão a mudar o seu objectivo militar. Sem combater nenhuma batalha decisiva, o “Grand Armée” deixou a costa do Canal, entrou em Viena a 13 de Novembro de 1805, destruiu os exércitos austro‑russos em Austerlitz em 2 de Dezembro e deixou a França como a potência dominante na Europa central. Estes acontecimentos não tinham paralelo na Europa. A velocidade a que os exércitos napoleónicos conduziam as operações era única no seu tempo. A superioridade era de tal forma esmagadora que o choque produzido se propagou à batalha de Auerstadt e Jena onde o Exército Prussiano foi destroçado.

A Revolução Francesa coincidiu com uma revolução na conduta da guerra que tinha já sido iniciada durante a monarquia. As duas cruzam‑se, mas é a adopção da conscrição universal que desempenha um papel fundamental. Agora era possível conduzir mais campanhas e mais exigentes.

Napoleão reconheceu a importância da Revolução Francesa na conduta da guerra, e nas palavras de Clausewitz, corrigiu as imperfeições técnicas e “ [a França sob o seu comando] marchou estrondosamente sobre a Europa com tanta confiança e certeza que por toda a parte por onde passava só encontrava exércitos antiquados […]”29 nunca deixando dúvida na vitória. O génio de Napoleão era perceptível quando o comparamos com os seus contemporâneos. Para Napoleão a arte da guerra era simples, era tudo uma questão de execução.30

Todas as guerras são o resultado de decisões políticas e a expressão de uma intenção política, seja ela realística ou desejável, o que desde logo não significa que qualquer guerra em particular é necessariamente apropriada para a implantação da política que serve. Historicamente, os governos e seus assessores militares e comandantes encontram muita dificuldade em deter­minar qual a relação entre a política externa e a guerra e, por conseguinte, que recursos mobilizar e empregar. Este aspecto preocupou mais Napoleão do que meramente o treino e a preparação militares. Apesar do seu génio militar, Delbruck considerou os talentos de Napoleão mais como estadista do que como soldado. Porém, como estadista Napoleão deve ser considerado agressivo, propenso à guerra. Não via a guerra como o último recurso mas como elemento central da sua política externa.31

Os planos estratégicos de Napoleão tinham como finalidade uma decisão táctica que fosse esmagadora, ou seja, uma batalha decisiva que destruísse o exército adversário. Nas suas campanhas o movimento em território inimigo não tinha como objectivo qualquer localização particular, mas levar o adversário a uma batalha obrigatória. As acções de Napoleão serviam‑se de todos os meios à sua disposição para dar batalha, sem perder a liberdade de acção logística e em segurança, já que os exércitos dependem das suas linhas de comunicações com a zona do interior. Em poucas palavras, para Napoleão as operações militares consistiam na combinação entre o movimento com a logística.

Procurando resumir os imutáveis princípios da guerra, Napoleão escreveu, ele próprio, em Santa Helena que “Os princípios de César foram os mesmos que os do Alexandre e Aníbal: Manter as suas forças reunidas, não ser vulnerável em nenhum ponto, transportar‑se com rapidez para os pontos impor­tantes, ter em atenção os valores morais, a reputação das suas armas, o temor que elas inspiram, e também os aspectos políticos para manter na fidelidade os aliados e na obediência os povos conquistados.”32

Nenhum comandante emergiu na sua época com uma paixão tão grande pela aniquilação do seu oponente. E como tal, Napoleão reconheceu que o meio mais adequado para o fazer era necessário dispor de uma força esmagadora e concentrá‑la no momento e local decisivos, o que reflecte a sua necessidade psicológica da conquista e do domínio absoluto.33

Napoleão combinava em si mesmo o cargo de comandante supremo e de chefe de Estado o que colocava muito próximo a política da guerra, eliminando a fricção típica desse relacionamento. Era portanto mais eficaz a conjugação de todas as formas de coacção tendo em vista a finalidade da guerra. Contudo, unidade de comando não implica a garantia de uma política adequada.

Um excelente exemplo neste âmbito é a estratégia napoleónica para a terceira invasão francesa. Com o objectivo de esmagar os ingleses na Península Ibérica, Napoleão concentrou um exército e pretendia alterar a sua política de alianças para apaziguar a subversão em Espanha, destronando o seu irmão José Bonaparte e entronizando Fernando VII. Porém, para o seu irmão os ingleses não eram uma ameaça real, mas propagação da subversão, o que levou José Bonaparte a dispersar forças numa tentativa de apaziguamento do território, regionalizando a Espanha e reduzindo o poder central. Ao contrário Napoleão pretendia a conquista de Lisboa para impedir que Portugal fosse uma cabeça de praia na Europa.

Estas desinteligências entre Napoleão e o seu irmão mostraram duas vulnerabilidades na condução da política. A primeira, foi mostrar que a acção de Napoleão foi de uma grave subjectividade política ao não depor o irmão, acirrando ainda mais o movimento subversivo. A segunda foi permitir que o seu irmão dividisse a Espanha fomentando uma divisão territorial propícia às lutas de poder, enfraquecendo ainda mais o poder central e insurreição contra o ocupante.


3. Do Combate Irregular durante as Invasões Francesas

Para se compreenderem as invasões francesas e a consequente guerra peninsular, é necessário explicar o ambiente internacional no qual Portugal se inseria. As relações internacionais eram moldadas pelo poder com dois novos conceitos: a razão de estado34, que permitia a um país, para melhorar o seu bem‑estar, a utilização de todos os instrumentos e o equilíbrio de poder que permitia a perseguição dos interesses nacionais em nome da segurança e do progresso.

Durante o século XVIII, assiste‑se à rivalidade crescente entre a França e a Inglaterra pela supremacia europeia e mundial. Nos finais dos séculos XVIII e início do XIX, foi ainda mais notória a rivalidade, quando, depois da Revolução Francesa (1789), em nome do universalismo – Liberdade, Igual­dade e Fraternidade – a França esteve quase a conseguir uma comunidade europeia, contrariada pela Inglaterra na defesa do equilíbrio de poder como objectivo nacional premente.

Portugal, depois de 1793 e após a sua participação na guerra contra a Revolução Francesa ao lado da Inglaterra e da Espanha, depois desta ter obtido uma paz separada, ficou isolado, no continente, contra a França. De qualquer forma, o Estado português manteve a sua estratégia, na manutenção do seu império, utilizando uma diplomacia extremamente versátil, de dilação com a Espanha e a França e pragmática em relação à Inglaterra.

As pressões sobre Portugal para alinhar com a potência continental, a França, estiveram particularmente acesas durante a Revolução, Consulado e Império, até à primeira invasão em 180135. Este facto revela a importância geoestratégica do território nacional, quer para a Inglaterra, quer para a França, ambas em disputa pela hegemonia europeia e mundial.

Napoleão, executor da estratégia francesa, tentou isolar a Inglaterra numa primeira fase e depois através de uma planeada invasão, o seu esmagamento político. Porém a derrota em Trafalgar nunca veio a permitir esses objectivos a Napoleão. A Inglaterra era dominante nos mares e os nossos portos eram essenciais à frota inglesa.

Em 1807 (10 de Julho) o governo Português foi avisado que deveria fechar os portos aos navios ingleses e nesse mesmo ano, em Outubro, já o exército Francês avançava em direcção a Portugal sob o comando de Junot. No mesmo mês foi assinado o tratado de Fontainebleu entra a França e a Espanha.

a. A Subversão

Pelo Tratado de Fontainebleau (1807), a França e a Espanha decidem a invasão de Portugal e a sua divisão em três partes com uma regência nomeada à partida. A concretização deste tratado, atingia profundamente a Inglaterra cortando‑lhe a utilização dos nossos portos marítimos – o bloqueio conti­nental por parte da França de Napoleão – ao mesmo tempo que fazia a Espanha sonhar com um estado peninsular.

A 30 de Novembro de 1807 Junot chega a Lisboa e faz uma proclamação dizendo que “vinha salvar da influência da Inglaterra o nosso povo e o príncipe regente”.36 As tropas invasoras (francesas e espanholas) formam no Rossio a 13 de Dezembro e substituem a bandeira portuguesa pela francesa e rebentam de imediato tumultos que acabam por ser dispersos pelas tropas de ocupação.

Em 22 de Dezembro é decretado em todo o país o desarmamento obrigatório, as tropas são licenciadas, as milícias são dissolvidas e as armas entregues no Arsenal. São mandados confiscar todos os bens daqueles que fugiram para o Brasil. Lança‑se no país um imposto de cem milhões de francos e manda‑se concentrar na casa da moeda o ouro e prata de todas as capelas, igrejas e confrarias de Lisboa.

A 1 de Fevereiro de 1808, Junot publica um manifesto que depõe o regente e consuma a anexação de Portugal à França. Na proclamação prometia‑se o desenvolvimento das comunicações, da agricultura, do respeito pela religião e a promoção da instrução. É constituído um conselho militar presidido por Junot e é colocado em cada província um corregedor‑mor.

Com a proclamação de 1 de Fevereiro, o poder, que já se encontrava nas mãos de Junot, foi assumido expressamente por Junot em nome de Napoleão. Este poder tinha por base a força e a repressão e estendia‑se a todo o país. A população encontrava‑se apática, embora em Lisboa os tumultos fossem vulgares, mas sem um cunho organizado. A maior parte da sociedade servia a autoridade de ocupação.

Não havia muitos motivos para Junot ficar preocupado com a possibilidade de uma rebelião. A grande parte da população era indiferente aos acontecimentos, habituada à miséria e descrente de um rei que os abandonara e que os aconselhara a receber bem os franceses; o alto clero e a classe dirigente apoiavam a autoridade de ocupação; a propaganda francesa visava o bem‑estar da população. Contudo, alguns acontecimentos vieram a lançar a semente para a germinação de uma insurreição. Entre eles destacamos os desacatos constantes entre as tropas e as populações; os tributos sobre a população; espoliação das igrejas; e a paralisação do porto de Lisboa no contexto do bloqueio continental aos britânicos.

Com o desencadear de uma insurreição popular em Espanha (02 de Maio de 1808), o espírito da revolta transmite‑se a Portugal. Uma sucessão de acontecimentos leva à proclamação da regência no Porto e ao reconhecimento de Junot de que as forças à sua disposição são insuficientes para controlarem o território. Todo o território estava inflamado da vontade de independência o que se traduzia numa entrega denodada à luta contra os invasores.

Por ser uma forma de guerra que não se enquadrava nos rígidos moldes de disciplina e organização da época, esta forma de guerra pareceu episódica e a que poucos deram atenção e que muitos políticos temeram. Para qualquer chefe militar, ela punha em causa um modelo de guerra baseado em exércitos permanentes e que se baseava na rigidez da manobra de grandes efectivos em terreno a descoberto, com o qual se pretendia cumprir a simultaneidade do fogo dos mosquetes e do efeito de massa dos fogos de artilharia. O modo de actuação de gente avulsa e rudimentarmente armada, saía fora do que os oficiais sabiam fazer e não em forças que davam brilho comandar.

A guerra subversiva que teve início em Portugal teve na sua base a ocupação violenta e demorada do território nacional. Teríamos que remontar ao período de ocupação romana da península para relembrar que a eficácia dos lusitanos “se conta pelo número de pretores que se sucediam.” Na Idade Média e até finais do século XVIII esta forma de combate sofreu um apagamento, principalmente devido ao facto de que os exércitos se movimen­tavam e combatiam concentrados e não era remunerador atacá‑los em inferioridade.

Porém, com Napoleão, a introdução do movimento convergente de unidades a partir de um dispositivo disperso, introduzia uma brecha no dispositivo que começaria a ser aproveitado pelas forças subversivas.

Segundo a doutrina hoje aceite, já constante nos manuais do Exército Português,37 a guerra subversiva é uma guerra levada a cabo por uma população “luta conduzida no interior de um dado território, por uma parte dos seus habitantes, ajudados e reforçados ou não do exterior, contra as autoridades de direito ou de facto estabelecidas, com a finalidade de lhes retirar o controlo desse território ou, pelo menos, de paralisar a sua acção.”38

Ao contrário de todas as formas de guerra, o atacante é militarmente mais fraco, em termos formais ou regulares. Contudo, é o mais fraco que escolhe o momento e o local e toma a iniciativa. Tem a seu favor o conhecimento do terreno e a sua plena identificação com a população local, que constantemente a protege, informa e apoia.

A insurreição contra Junot é um exemplo de levantamento popular tendo por base um forte sentimento de independência e surge como uma natural reacção contra a ocupação e domínio de um exército estrangeiro. No caso da segunda e terceira invasões (Soult e Massena), assiste‑se já a uma actuação das guerrilhas na qual a sua acção é uma alavanca de apoio ao processo militar convencional.

A grande maioria da população era rural e submissa, resignada, consideravelmente atrasada e profundamente religiosa. A censura existente sobre a imprensa havia muito tempo, tinha impedido a publicação de obras “avan­çadas” que precederam e se seguiram à Revolução Francesa, mantinha a população desconhecedora das novas ideias, embora entre a burguesia, essas ideias já germinavam.

Porém, havia à partida uma separação cultural que fomentava a desconfiança para com os invasores, embora os ventos da revolução anun­ciassem melhorias nas condições de vida. Referimo‑nos concretamente ao choque provocado em Portugal pelas medidas anti‑religiosas dos primeiros anos da Revolução Francesa e, já com Napoleão no poder em França, os conflitos do Imperador com a Igreja Católica e os actos de violência e de desrespeito com o papa Pio VII. Tais lembranças e tais receios tiveram um peso considerável no ambiente de desconfiança e de hostilidade existente contra os invasores.

A economia nacional estava demasiado dependente do comércio de produtos importados ou exportados do Brasil e sofreu um rude golpe com a retirada da família real para o Brasil e com a abertura dos seus portos ao comércio estrangeiro. A agricultura definhava e a falta de produtos aumentava com a presença das tropas estrangeiras.

Do ponto de vista ideológico não parece ter havido nenhuma conscientemente apregoada. Porém podemos discernir o sentimento de independência e o forte enraizamento católico como dois factores que podemos considerar como bases de uma ideologia que pode ser considerada como o “messianismo português”.39

A causa da subversão é demasiado nítida: O domínio estrangeiro de Portugal. O seu objectivo é retirar o controlo do poder por parte dos invasores e expulsá‑los do país. A subversão tirou proveito da tensão social resultante dos impostos; dos aspectos de ordem religiosa em especial pela recolha dos bens das igrejas e da liberdade religiosa apregoada pelos franceses; e da paralisação do porto de Lisboa (essencial para a economia do país). Estas tensões acabam por ser exacerbadas pela acção repressora das tropas invasoras, que numa tentativa de pacificação ia cavando um abismo cada vez maior entre a população e o invasor.

b. A Acção Contra‑subversiva

Havia alguns factores que eram favoráveis à inércia da subversão. As tensões sociais existentes em Portugal funcionaram como um retardador da subversão. A miséria em que se encontrava a população não foi alterada, inicialmente, pela ocupação que, pelo contrário, prometia melhoria nas condições de vida. O povo criava ressentimentos para com a classe dirigente, que se retirou para o Brasil e que colaborou com o invasor.

A existência de um “partido avançado” que comungava de ideias liberais, de que consideravam representante o exército francês, foi também um factor de inércia para a subversão. Os representantes desse partido chegaram a apresentar uma petição a Napoleão pela qual pediam um soberano estran­geiro que orientasse a sociedade no sentido do liberalismo. Soma‑se a estes factores o facto da família real ter aconselhado, a receber bem os franceses.

Do ponto de vista ideológico, a contra‑subversão proclamou a liber­tação da influência britânica, o desenvolvimento da agricultura e a manutenção do respeito pela religião. Instalou‑se um dispositivo militar com base nas principais cidades e enviaram‑se as melhores tropas para combater em França e nomeou para cada província uma autoridade com responsabilidade civil e militar. Junot licenciou as tropas portuguesas e mandou algumas delas para combater em França e procurou a colaboração do “partido avançado”.

Porém a actuação foi bem diferente da atitude proclamada. A substi­tuição da bandeira nacional em 13 de Dezembro de 1808, a parada militar no Rossio com a declaração de Junot a terminar com vivas ao Imperador Napoleão I, a que nenhuma das milhares de pessoas que assistiram replicaram, deu início nesse dia e dia seguinte a tumultos generalizados, que custariam vidas aos soldados franceses e ao povo pelas descargas das forças invasoras.

Como apresentámos anteriormente, parecia não haver indícios de uma rebelião contra a ocupação. Porém com o desencadeamento dos movimentos por influência dos acontecimentos em Espanha e pelo apoio da Inglaterra, levam Junot a reagir prontamente e com violência à insurreição. Junot manda Loison marchar sobre o Porto, o foco mais importante da insurreição e proíbe os festejos de S. João e S. Pedro. O exemplo da repressão francesa é bem patente nas palavras de Kellerman acerca da sua acção em Beja: “Beja tinha‑se revoltado. Beja já não existe”.40

Para acalmar as tropas portuguesas ao serviço da França, manda que sejam pagas como as francesas. Com base em Lisboa são iniciados raides de pacificação cujos resultados são saques e execuções sumárias. Loison reprime severamente as populações de Évora, Estremoz e Elvas e o resultado é a submissão pelo terror.


4. Considerações sobre o Combate Irregular

Estratégia é Estratégia seja qual for a circunstância, mas o comportamento de quem aplica a força que a estratégia orienta, varia de caso para caso. Clausewitz é claro neste ponto ao afirmar que “ […] o acto de apreciação mais decisivo que um homem de Estado ou um comandante chefe executa, consiste, pois, na apreciação correcta da forma de guerra que leva a efeito, a fim de não a tomar por aquilo que ela não é e não querer dela aquilo que a natureza das circunstâncias lhe impede que seja. […] Contentemo‑nos em […] determinar o principal ângulo sobre o qual a guerra e a sua teoria devem ser abordados.”41

As forças napoleónicas representavam o zénite da guerra regular na Europa. Combate regular e combate irregular coexistem no campo de batalha. As condições assimétricas por si só não implicam que uma guerra seja combatida de forma irregular ou vice‑versa. Porém o que devemos aqui realçar é que era a forma regular de combate que era a norma da época e para o qual os exércitos napoleónicos deviam estar aptos a combater.

O modo napoleónico era o que melhor se adaptava ao ambiente estratégico na Europa e aquele que poderia levar os franceses a obterem uma vitória na Europa.

Parece não ter estado em causa o objectivo político traçado por Napoleão para os seus exércitos na Península, nem o facto de que só o bloqueio continental dos portos da Europa levaria à derrota da Inglaterra. As guerras napoleónicas traduziam a política em si mesmo. A questão em causa foi a forma como as acções militares foram conduzidas, que se traduziram num efeito estratégico não pretendido. “Os franceses tinham derrotado e continuaram a derrotar as forças regulares na Península. Por isso o foco da acção contra Napoleão passou a ser a guerrilha. A mobilização de forças regulares, por parte dos ingleses e espanhóis, e a sua pronta derrota pelas tropas napoleónicas espalhou o veneno da subversão em vez de tentar combater uma batalha decisiva. O papel fundamental que a Inglaterra passou a desempenhar passou a ser o encorajamento à insurreição. O resultado alcançado com este esforço britânico teve efeitos que contrastaram, pela positiva, com os das alianças com outras potências continentais.42

A subversão é um fenómeno progressivo que visa um poder que pode ter como objectivos políticos a criação de uma nova sociedade, a simples modificação do regime existente ou substituição do regime existente.43 Em Portugal, a subversão foi baseada na exploração de problemas ou contradições evidentes de natureza ideológica, política, religiosa e económica.44 O facto de existirem problemas reais e contradições em determinadas sociedades não é sinónimo de existência de subversão, embora lhes possam ser propícios. É necessário um agente catalizador que desperte as consciências e amplie os problemas para vencer a inércia das massas.45

O fenómeno subversivo, como o gerado em Portugal e Espanha, não é um fenómeno simples nem padronizado. Parece ser um fenómeno que se adapta de acordo com o que está em jogo e que na sua base tem um conjunto de factores que devem ser tomados em conta no seu combate. São eles: a população como centro de gravidade; o movimento subversivo não é o objectivo; a ideologia; a cultura; o tempo; e isolar politicamente o adversário.

a. A População Como Centro de Gravidade

A uma acção subversiva deve ser aposta uma acção contra‑subversiva, que tem por base o fortalecimento das estruturas da região em causa, de modo a impedir que a subversão se possa iniciar ou que possa ter êxito. A acção contra‑subversiva deve apoiar‑se num programa político bem definido, realizável e que vá de encontro às necessidades da população.46

No combate irregular o foco é o povo e a sua protecção. O campo de batalha de maior significado é a mente do povo. Se o povo puder ser protegido e se acredita que o é, então qualquer acção tenderá a ser bem sucedida. Contudo, a protecção do povo não é alcançada com acções agressivas com forças militares.

A população nestas guerras serve de apoio, fornecendo elementos para a luta e facilitando o movimento dos elementos subversivos. Nesta ordem de ideias, para além da simpatia, a subversão carece da sua cumplicidade.47

b. O Movimento Subversivo Não Deve Ser o Objectivo

Enquanto o “coração e mente” do povo for o campo de batalha da subversão e contra‑subversão, estas não podem ser combatidas de forma regular. Será um pouco absurdo não qualificar o movimento subversivo como importante, mas, por muito que choque a abordagem regular, não é decisivo para o sucesso da contra‑subversão. Quando o sucesso é possível, é necessário mostrar aos “corações e mentes” que o futuro é melhor do que o presente.

A vitória não será o produto dos combates vitoriosos com o movimento subversivo. Apesar de uma guerra irregular poder ser perdida militarmente temos que enfatizar que não pode ser ganha apenas com o instrumento militar. O movimento subversivo e a acção contra‑subversiva competem pela “conquista do povo”. A vitória no combate militar não tem significado estratégico, a não ser para a reputação dos beligerantes ou para a protecção do povo. Contrariamente ao combate regular tradicional, os objectivos da acção contra‑subversiva não são o movimento subversivo nem o território que ocupa. O objectivo “típico” é retirar ao movimento subversivo o apoio que dispõe no seio da população. A vitória não é o reflexo do número de baixas infringidas ao movimento subversivo.

c. A Ideologia

É mais ou menos unânime que a causa subversiva se mobiliza em torno de causas políticas, religiosas ou ambas. Neste tipo de guerra onde os êxitos são sobretudo psicológicos, as palavras, as ideias e as percepções desem­penham um papel importante, sendo a melhor propaganda uma operação militar.48

A ideologia representa a validação de Clausewitz acerca do carácter político de todo o comportamento militar.49 A força militar deve produzir efeitos positivos em apoio a uma visão política, credível e atractiva ao povo.

d. A Unidade de Esforços

O combate irregular é, ou deverá ser, executado em ambos lados de forma estratégica (estratégia total). Todos os instrumentos de persuasão, coerção e influência têm de ser empregues. O conflito terá linhas de operações políticas, ideológicas, económicas, diplomáticas e militares. O inimigo irregular não aspira a vencer militarmente, numa batalha com o exército mais forte. Mas também não necessita.

Para bater um inimigo irregular, como é o caso de um movimento subversivo, é necessário organizar os instrumentos militares e não militares numa cadeia de comando única, como uma autoridade não ambígua ao mais alto nível. Se todas as guerras são políticas, o combate irregular reveste‑as ainda de mais importância política e, porventura, de forma absoluta.

A acção militar tem de ser cabalmente subordinada às prioridades da política e, como temos vindo a enfatizar, a prioridade máxima é a protecção da população.

e. Confrontação Cultural

No combate regular entre exércitos regulares, as circunstâncias do combate e o comportamento militar esperado é substancialmente semelhante. Os contendores actuam numa plataforma doutrinária comum (ou muito similar).

Contudo, num combate irregular, as diferenças culturais pesam no prato da balança de acordo com as circunstâncias, tradições e preferências. Este facto é tanto mais importante porque cada contendor adapta as suas ideias e equipamento a estes factores.50 O resultado de uma acção militar decisiva não será baseado numa diferença cultural. Porém, eliminar o aspecto cultural num combate irregular pode ser fatal para o seu sucesso. A cultura é o capital social e baseia‑se em crenças, atitudes, hábitos e comportamentos de uma socie­dade. Como o campo de batalha é o “coração e a mente” da população então a cultura assume uma importância decisiva.

f. Tempo

A guerra e a estratégia têm uma relação intrincada com o tempo: uma oportunidade perdida nunca mais se recupera. Seja no combate regular ou combate irregular, é necessário reconhecer que o tempo é uma arma que serve por exemplo para garantir profundidade na acção em substituição de recursos materiais. Por princípio o tempo é uma arma de grande valor para o movimento subversivo, porque este marca o seu ritmo operacional.

Na subversão não há batalhas decisivas nem rapidez de movimentos necessários a uma vitória rápida, porque o alastramento da subversão é lento. O desenvolvimento clássico do fenómeno subversivo desencadeia‑se em cinco fases, com limites sobrepostos: a fase pré‑insurreccional que compreende a fase preparatória e de agitação; a fase insurreccional que compreende a fase armada; a criação de um Estado Revolucionário; e a fase final, com um exército regular já formado e pronto a ser empenhado na conquista do poder.

g. Isolar Politicamente o Adversário

Enquanto as autoridades podem ver o movimento subversivo como bandidos armados ou terroristas, a população pode ter uma opinião substancialmente diferente. Conhecem alguns dos elementos subversivos e nutrem por eles alguma simpatia. É portanto muito importante não demonizar o inimigo, como encontramos em Jomini quando se refere aos combates com a guerrilha como “assassinato organizado de soldados isolados”.51

Devido ao carácter do conflito irregular, deve haver tempo, se houver projecto político, para mitigar os factores que conduziram à subversão. Na sua dimensão política, as forças contra‑subversivas devem ser capazes de demonstrar que podem oferecer um futuro político alternativamente superior.

Como o movimento subversivo pretende causar o caos e uma reacção desproporcionada do agente contra‑subversivo, este deve actuar dentro das normas legais. O sucesso pode depender da confiança do povo na aplicação da lei e ordem e do não temor ao agente contra‑subversivo.


Conclusões

A análise que efectuámos não pretende esgotar a discussão acerca da natureza da estratégia. Na introdução apresentámos quatro pontos de referência que em conjunto apresentam uma linha que liga combate regular e combate irregular, estratégia, guerra e modelo de guerra napoleónico.

A primeira conclusão que retiramos é que a estratégia e a guerra têm constantes respeitantes à violência motivada pela política. Por conse­guinte, é necessário apenas uma única teoria que englobe a guerra e a estratégia, seja qual for a tipologia de guerra ou combate. Porém, temos que reconhecer que o combate evolui e que, dependendo das caracte­rísticas no mesmo período o modo de fazer a guerra pode ter várias configurações. No caso analisado, ao modelo napoleónico – convencional – opôs‑se um modelo de combate irregular – subversão – como resultado do aproveitamento das condições específicas existentes na Península Ibérica. Contudo, os principais atributos da natureza da guerra e do combate mantém‑se – o acaso, a fricção, a desordem, o perigo, a incerteza – tal como apresentado por Clausewitz, podendo variar de importância dependendo das circunstâncias concretas.
A segunda conclusão revela a instrumentalidade do uso da força. A estratégia está relacionada com as consequências do uso da força e não o uso da força em si mesmo. Porém não é a estratégia que decide o resultado, mas sim o resultado do combate, este no sentido mais amplo da utilização de todos os meios de coacção.

A terceira conclusão que tiramos é a de que o combate irregular é em muitos aspectos diferente do combate regular, mas não na sua natureza estratégica. A guerra é diferente da estratégia. Não há guerras regulares nem guerras irregulares, há apenas guerras. A natureza da estratégia funciona do mesmo modo para todas as tipologias de guerra e de combate, porque procura um efeito político pretendido. O que o soldado faz tem alcance estratégico, que é o mesmo que dizer alcance político.

A outra conclusão que retiramos está relacionada com o deficit estratégico do modelo napoleónico de guerra, o qual não era adaptado de forma alguma ao combate numa “guerra irregular” como é o caso da contra‑subversão. Embora os ideais da Revolução Francesa pudessem ser considerados como o projecto político da França de Napoleão, a acção operacional e táctica das forças napoleónicas não o alcançaram, embora as condições em Portugal fossem até favoráveis. Aspectos de ordem cultural, ideológica e social não foram tidos em consideração suficiente para afirmar que de todas as guerras a irregular é a mais política.

A resposta à questão que formulámos está contida nas conclusões anteriores. Porém, em jeito de reflexão final queremos mais uma vez afirmar que o nosso objectivo era apresentar um conjunto de factores que se mantêm hoje nas actuais operações com as quais os exércitos ocidentais lidam. A utilização de um exemplo com duzentos anos relembra‑nos que a natureza da estratégia e da guerra se mantém e que o resultado acaba por ser definido pela escolha do método e pela intemporal dificuldade de execução da estratégia.


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YARGER, Harry R. (2006), Strategic Theory for the 21st Century: The Little Book on Big Strategy, Carlisle: Strategic Studies Institute, USAWC.
TZU, Sun, A Arte da Guerra. Rio de Mouro: Coisas de Ler, 2002. 2ª Edição. ISBN 972‑8710‑10‑0.

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* Major de Infantaria. Professor de Táctica na Área de Ensino Específico do Exército no IESM.

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1 Hart, p. 109. Lidell Hart apresenta o fomento e apoio da subversão em Portugal e Espanha pela Inglaterra, como uma estratégia de abordagem indirecta contra Napoleão.
2 “Précis de L’Art de la Guerre”.
3 Jomini, p. 44.
4 Jomini, p. 43.
5 Idem, Ibidem.
6 Freedman, p. 9; como processo, consideramos que a estratégia pode ser também definida como o resultado do modelo Objectivos‑Meios‑Fins.
7 Clausewitz (1984), p. 24.
8 Idem, p. 209.
9 Kiras, p. 208; ênfase no original.
10 “A Arte da Guerra”.
11 Dupuy, pp. 63‑64.
12 Kiras, p. 211‑212.
13 No Vietname os EUA venceram todas as Operações de Grande Envergadura mas perderam a guerra.
14 Neste caso, consideramos a política como a actividade desenvolvida com a finalidade de manter a unidade política.
15 Clausewitz (1982), p. 241.
16 Gray, “Modern Strategy”, p. 243.
17 Yarger, p. 52.
18 Clausewitz (1982), p. 405.
19 Idem, p. 119.
20 Clausewitz (1984), p. 24‑25.
21 Gray, “Why Is Strategy Dificult?” pp. 6‑12; Jablonsky, pp. 115‑126.
22 Clausewitz (1984), p. 21.
23 Idem, Ibidem, ênfase do autor.A
24 Yarger, p. 28‑29.
25 Clausewitz (1982), p. 140.
26 Idem, p. 402.
27 Idem, p. 405.
28 Idem, p. 164.
29 Clausewitz (1982), p. 385.
30 Paret, Op. Cit., p. 127.
31 Paret, pp. 128‑129.
32 Barata (1989), Op. Cit., p. 6 (ênfase nossa).
33 Paret, p. 136.
34 Sobre a “razão de estado” consultar Adriano Moreira, pp. 80‑81.
35 Após uma derrota em Aboukir (Turquia) com a armada Inglesa, Napoleão perde um ponto de apoio para o controlo das rotas comerciais com a Índia. Neste contexto, planeou a invasão de Portugal em 1801, o que implicava desde logo uma “invasão” de Espanha, o que, para o impedir, implicou que Portugal fosse invadido por Espanha na tristemente célebre guerra das Laranjas, na qual Portugal perdeu Olivença.
36 Santos, Op. Cit, p. 177.A
37 EME (1966 a).
38 Idem, Cap. I, p. 1.
39 Santos, p. 192.
40 Santos, Op. Cit., p. 186.
41 Clausewitz (1982), p. 121.
42 Hart, p. 110.
43 Garcia (2007), pp. 116‑117.
44 De acordo com a caracterização efectuada por Couto, p. 219.
45 Garcia (2007), p. 117.
46 Idem, pp. 133‑134.
47 Idem, p. 119.
48 Garcia (2007), Op. Cit., p. 119.
49 No capítulo “The People in Arms” (1982) reconhece a capacidade da acção da guerrilha, em particular como uma táctica utilizada pela população ultrajada pelo invasor. Este tipo de combate é reconhecido por Clausewitz que só pode ter sucesso em condições permissivas. De facto, na sua obra Clausewitz dedicou pouca atenção a este tipo de combate levado a cabo pelas populações, mas não foi esquecida.A
50 W. Murray e R. Millet, no seu trabalho “Military Innovation in the Interwar Period” argumentam respostas diferentes a oportunidades tecnológicas.
51 Jomini, p. 44.