terça-feira, 10 de junho de 2008

Guerra Popular

Da Guerra

autor: Carl Von Clausewitz

LIvro VI - Defesa

CAPITULO XXVI

O armamento do povo


A guerra do povo é, na Europa civilizada, um fenômeno surgido no século XIX. Ela tem os seus defensores e os seus adversários; estes últimos consideram-na, dum ponto de vista político, como um meio revolucionário, um estado de anarquia legalizada, tão perigoso para ordem social no interior como para o inimigo, ou consideram do ponto de vista militar que os seus êxitos não são proporcionais ao dispêndio de força. O primeiro ponto não nos diz aqui respeito, pois nós encaramos uma guerra popular como um simples meio de combate, e por conseguinte em relação com o inimigo; mas a respeito do segundo bonto deve notar-se que uma guerra do povo deve em geral ser considerada como uma consequência da maneira como o elemento guerreiro quebrou nos nossos dias as suas velhas barreiras artificiais — por lonseguinte como uma extensão e um reforço de toda esta fermentação jue denominamos a guerra. O sistema das requisições, o crescimento fspantoso da massa dos exércitos graças a este sistema e à conscrição iniversal, e o emprego de milícias, sïo coisas que vão todas no mesmo sentido, se se partir do sistema militar limitado do passado; e o le­vantamento dos landsturm, ou armamento do povo, actua também no mesmo sentido. Se os primeiros designados destes novos complementos da guerra constituem as consequências naturais e necessárias do derrubamento das barreiras, e se eles aumentaram o poder daqueles que primeiro se serviram deles a tal ponto que o inimigo foi por sua vez conduzido e obrigado a adoptá-los, a mesma coisa acontecerá com as guerras nacionais. Na maior parte dos casos, a nação que faz uma utilização judiciosa destes meios alcançará uma superioridade sobre aqueles que não curam de se utilizar deles. Neste caso, a única questão é a de saber se esta nova intensificação do elemento guerreiro é, no conjunto, salutar ou não para a humanidade, questão à qual não seria mais fácil responder do que à questão da própria guerra. Confiemo-las ambas aos filósofos. Mas pode-se avançar a opinião de que os recursos que uma guerra do povo custa poderiam ser empregues mais proveitosamente se servissem para alimentar outros meios de combate. No entanto, não é necessário um exame muito aprofundado para nos convencermos que na sua grande maioria estas forças não estão à nossa disposição e não podem ser utilizadas à vontade. Um elemento essencial, a saber, o elemento moral, só pode ter existência pelo seu emprego sob esta forma. Por conseguinte, não perguntemos mais: quanto custa à nação a resistência que todo o povo em armas pode oferecer? Mas: que influência pode ter esta resistência? Quais são as suas condições, e como nos podemos servir delas?

Uma resistência tão largamente dispersa não está evidentemente apta a vibrar grandes golpes que exigem uma acção concentrada no espaço e no tempo. A sua acção, tal como o processo de evaporação na natureza física, depende da extensão da superfície exposta. Quanto maior ela for, mais estreito será o contacto com o exército inimigo, mais este exército se dispersará e tanto mais poderosos serão então os efeitos do armamento popular. Ele arruinará as bases do exército inimigo tal como uma combustão lenta e gradual. Como ele exige tempo para produzir o seu efeito, ele forma-se, enquanto que os elesmentos hostis se examinam um ao outro, um estado de tensão que se relaxa a pouco e pouco se a guerra popular se extingue em certos pontos para arder lentamente noutro lado, ou então conduz a uma crise se as chamas desta conflagração geral abraçam o exército inimigo e o obrigam a evacuar o país antes de ser completamente destruído. Para que a guerra popular sozinha possa produzir este resultado é necessário que ela disponha de espaços extensos, que não existem em nenhum país da Europa, excepto na Rússia, ou que haja entre a forma do exército invasor e a extensão do país uma desproporção que nunca se encontra na realidade. Se se quer evitar perseguir um fantasma, deve-se pois imaginar uma guerra popular que esteja sempre combi­nada com uma guerra conduzida por um exército permanente, ambos concebidos segundo um plano de conjunto único.

As condições que sozinhas podem tornar eficaz a guerra popular são as seguintes:
1.° A guerra deve ser drenada para o interior do país.
2.° Uma única catástrofe não deve bastar para resolver o seu destino.
3." O teatro de guerra deve abraçar uma extensão considerável do território.
4.° As medidas tomadas devem corresponder ao carácter nacional.
5." O país deve ser do género cortado ou inacessível, quer seja montanhoso, arborizado ou pantanoso, ou em função do modo par­ticular de cultura.

Pouco importa que a população seja numerosa ou não, pois a falta de homens é menos verosímil do que a de outros elementos. Que os habitantes sejam ricos ou pobres também não é decisivo, ou pelo menos não deveria sê-lo; mas pode admitir-se que uma popu­lação pobre, impelida para trabalhos penosos e privações, se mostre de um modo geral mais vigorosa e mais aguerrida.
A dispersão dos habitantes, tal qual existe em numerosas regiões da Alemanha, é uma particularidade do país que favorece muito a acção da guerra popular. O país está assim mais cortado e mais coberto; as estradas são piores, mas mais numerosas; as tropas podem aquartelar-se sem indetermináveis dificuldades, e esta situação re­produz em pequena escala uma particularidade que a guerra popular possui em elevado grau, a saber, que o espirito de resistência, espalhado por todo o lado, não é perceptível em parte alguma. Se os habitantes vivem reunidos em aldeias, pode-se acantonar tropas nas mais turbulentas, ou então pilhá-las como represália, incendiar as suas casas, etc., sistema que é difícil aplicar numa comunidade campesina de Vestefália.

Os levantamentos de landsturm e as massas populares armadas não podem nem devem ser utilizados contra o corpo principal do inimigo, nem mesmo contra quaisquer corpos importantes; eles não devem tentar quebrar o núcleo, mas minar unicamente o exterior e os ângulos. Eles deveriam sublevar-se nas províncias situadas nas orlas do teatro da guerra, ai onde o assaltante não se apresenta em força, a fim de subtrair totalmente estas províncias à sua influência. As nuvens ameaçadoras que se acumulam sobre os seus flancos devem permanecer atrás dele à medida que avança. Onde não há inimigos, a coragem de se armar contra ele não falta, e a massa da população vizinha é a pouco e pouco levada a imitar este exemplo. O fogo extingue-se assim como um incêndio e atinge finalmente o território sobre o qual o agressor está estabelecido; ele apodera-se das suas linhas de comunicações e pesa nas artérias vitais das quais depende a sua exisstência. Pois mesmo se não sustentamos ideias exageradas acerca da onipotência da guerra popular, mesmo se não a consideramos como um elemento inesgotável e invencível, que a simples força dum exército pode controlar tão pouco quanto a vontade humana não domina o vento ou a chuva — em suma, mesmo se a nossa opinião não se fundamenta em imprecações verbais, deve-se apesar de tudo admitir que é impossível conduzir camponeses armados como uma secção de soldados que se mantêm reunidos em grupo e a quem se conduz com dureza; os camponeses armados, pelo contrário, quando estão animados, dispersam-se em todas as direcções, sem necessitar dum plano elaborado. A marcha dum pequeno corpo de tropas em país monta­nhoso coberto de espessas florestas, ou difícil sob qualquer outro as­pecto, pode ter então um carácter muito perigoso, pois a marcha pode transformar-se em qualquer altura num combate e, mesmo sem ter ouvido falar de corpos armados desde algum tempo, os mesmos camponeses já dispersos pela cabeça da coluna podem a todo o instante reaparecer sobre a sua retaguarda. Se se trata de destruir estradas e de bloquear estreitos desfiladeiros, os meios que as patrulhas ou as colu­nas volantes do exército podem utilizar neste caso constituem, relativamente àqueles que um corpo de camponeses insurrectos propor­ciona, aquilo que são os movimentos dum autómato relativamente a um ser humano. O inimigo nada mais pode opor à acção dos levan­tamentos de landsturm a não ser o destacamento de numerosos grupos para prover escoltas para comboios, ocupar depósitos militares, desfiladeiros, pontes, etc. Sendo os primeiros esforços dos levantamentos populares ainda fracos, os destacamentos enviados pelo inimigo serão em proporção pouco numerosos, pois ele receará dividir dema­siado as suas forças; é em contacto com estes pequenos destacamentos que o incêndio se alastrará cada vez mais; o inimigo é dominado pelo número em alguns pontos, a coragem e o ardor reforçam-se, e a intensidade da luta aumenta até à aproximação do ponto culminante que deve decidir acerca do seu resultado.

Na nossa opinião, a guerra popular, como qualquer coisa de vaporoso e fluido, não deve condensar-se em parte alguma num corpo sólido; senão o inimigo envia uma força adequada contra este núcleo, destrói-o e faz numerosos prisioneiros; a coragem nesse momento enfraquece, cada um pensa que a questão principal está resolvida, que qualquer esforço ulterior é vão e que as armas caíram das mãos da nação. Mas, por outro lado, é bem necessário que este nevoeiro se condense em determinados pontos, forme massas compactas, nuvens ameaçadoras de onde pode finalmente surgir um violento raio. Estes pontos situar-se-ão, sobretudo, nas alas do teatro de guerra inimigo, tal como já o dissemos. O povo armado deverá lá estar organi­zado em unidades mais importantes e melhor ordenadas, apoiado por uma pequena força de tropas regulares, de modo a dar-lhe o aspecto duma força regular e a prepará-lo para pôr em risco empreendimentos em maior escala. Quanto mais ele se afasta destes pontos, menos densa deve ser a organização do landsturm, de modo a ser sobretudo utilizada sobre a retaguarda do inimigo, onde este está exposto aos seus mais duros golpes. Os núcleos mais bem organizados cairão sobre as mais importantes guarnições que o inimigo deixa atrás de si; além disso, servem para criar um estado de mal-estar e de receio, e aumentam a impressão moral de conjunto; sem eles, o efeito total careceria de força, e a situação geral do inimigo não seria sufi­cientemente abalada.
As melhores condições e a forma mais eficaz de armamento do povo consistem em pequenos destacamentos antecipadamente levan­tados do exército. Sem o apoio de algumas tropas regulares que os encoragem, os habitantes carecerão geralmente de impulso e da confiança necessários para pegar em armas. Quanto mais fortes são os grupos destacados para este efeito, maior será o seu poder de atracção e mais poderosa a avalanche que ameaçará rebentar. Mas este movimento tem também os seus limites; por um lado, porque seria peri­goso desmembrar o exército inteiro em proveito deste objectivo secun­dário, dissolvê-lo em massas de landsturm formando com eles uma extensa e fraca linha defensiva, o que arruinaria simultaneamente o exército regular e os levantamentos populares, e por outro porque a experiência parece demonstrar que, quando se empregam demasiadas tropas regulares numa região, a guerra popular perde aí em vigor e eficácia. As causas deste facto são, em primeiro lugar, que numerosas tropas são assim atraídas para a região, depois que os habitantes con­tam então com as suas tropas regulares, e finalmente que a presença de grossos corpos de tropas exige uma exagerada contribuição da população em fornecimentos de um outro género: acantonamentos, transportes, prestações, etc.

Um outro meio de entravar qualquer reacção demasiado séria do inimigo contra a guerra popular constitui ao mesmo tempo um princípio director no método de emprego destes levantamentos, a saber: a regra segundo a qual, com este grande meio de defesa estratégico, nunca se deve procurar a defesa táctica, ou raramente. O carác­ter do combate de landsturm é o mesmo do de todos os combates tra­vados por tropas de qualidade inferior: muito ímpeto e ardor de início, mas pouco sangue-frio ou tenacidade na duração. Além disso, se uma força dos landsturm é desfeita ou dispersa, as consequências são pouco graves, pois é para isso que é feita; mas é necessário que não seja destruída por exageradas perdas em mortos, feridos e prisioneiros, pois uma derrota deste género depressa arrefeceria o seu ardor. Mas estas duas características são totalmente opostas à natureza da defesa táctica. No combate defensivo uma acção tenaz, lenta, sistemática, é necessária, e deve-se correr riscos com decisão; uma simples tentativa, que se pode abandonar logo que se deseja, nunca pode levar a resultados na defensiva. Se, portanto, uma tropa popular tem de assumir a defesa dum obstáculo natural qualquer, nunca se deve chegar através dela ao combate decisivo, radical; pois, mesmo se as circunstâncias são favoráveis, o levantamento popular será derrotado. Ele pode e deve, portanto, defender as proximidades das montanhas, os diques dum terreno pantanoso e as travessias dum rio, tanto tempo quanto possível. Mas desde que eles sejam cortados, ele deve dispersar-se, e prosseguir a defesa por ataques inesperados de preferência a concen­trar-se e arriscar-se a ficar fechado num refúgio estreito sobre uma posição defensiva regular. — Por mais corajoso que seja um povo, por mais guerreiros que sejam os seus costumes, por mais forte que seja o seu ódio ao inimigo, por mais propício que seja o terreno, é um facto indiscutível que a guerra popular só pode permanecer vivaz numa atmosfera saturada de perigo. Se, portanto, os seus materiais combustíveis podem ser transformados algures numa vasta braseira, isso tem de ser em pontos afastados, onde ela terá ar e não poderá ser . sufocada por meio de um único poderoso golpe.
Estas reflexões, são mais a expressão completa da verdade do que uma análise objectiva, pois até aqui o tema foi muito pouco estudado por aqueles que o puderam observar longamente com os seus próprios olhos; bastarnos-á acrescentar que o plano de defesa estratégico pode incluir a cooperação dum levantamento em massa de duas ma­neiras diferentes: quer como último recurso depois de uma batalha perdida, quer como assistência espontânea antes de ter travado uma batalha decisiva. Este último caso supõe uma retirada para o interior do país e o género de acção indirecta de que tratámos nos capítulos VIII e XXIV deste Livro. Resta-nos falar abreviadamente do levan­tamento dum landsturm depois da perda duma batalha.

Nenhum Estado deve admitir que o seu destino, ou seja, a sua própria existência, dependa duma única batalha, por mais decisiva que ela possa ser. Se ele foi derrotado, o chamamento de forcas frescas e o natural enfraquecimento que qualquer ofensiva implica com o tempo podem ocasionar um regresso de sorte, ou entào a ajuda pode vir do exterior. Está-se sempre a tempo de morrer e, do mesmo modo que é por um impulso natural que o homem perdido se agarra a uma ninharia, está na ordem natural do mundo moral que um povo utilize, inclusivamente, os últimos meios de salvação quando é impelido para a beira do abismo.

Por mais pequeno e fraco que seja um Estado comparado ao seu inimigo, pode-se dizer que perdeu toda a sua alma se renuncia a um último e supremo esforço. Isso não exclui a possibilidade de escapar à destruição completa através duma paz que impõe sacrifícios; mas esta tentativa não afasta a utilidade de novas medidas de defesa, e estas não tornarão a paz mais difícil nem pior, mas mais fácil e melhor. Elas são ainda mais necessárias se podemos contar com uma ajuda da parte daqueles que estão interessados na manutenção da nossa existência política. Por conseguinte, qualquer governo que só pense, depois da perda duma grande batalha, em permitir rapidamente ao povo desfrutar das vantagens da paz, e, dominado pelo sentimento da esperança desiludida, já não encontre em si a coragem e o desejo de aguilhoar a menor das suas forças, comete, haja o que houver, uma grosseira incoerência por fraqueza; ele mostra que não merece a vitória, e que, porventura, a sua atitude o tornava totalmente incapaz de a alcançar.
Por mais decisiva que, por conseguinte, tenha podido ser a derrota sofrida pelo Estado, as suas fortalezas e os seus levantamentos em massa podem mostrar-se eficazes no decurso duma retirada do exército para o interior. Neste caso, é vantajoso que as alas do principal teatro de operações sejam limitadas por montanhas ou por extensões de território muito difíceis sob um determinado ponto de vista; estas tornar-se-ão então bastiões das quais o inimigo terá de suportar o fogo do flanqueamento estratégico.

Se o inimigo vitorioso começa os preparativos dum cerco, se deixou fortes guarnições por toda a parte atrás dele para proteger as suas comunicações, ou até mesmo destacamentos de tropas para se precaver e manter nas mãos as províncias vizinhas, e se já está enfraquecido pelas suas diversas perdas em homens e em material de guerra, chega então o momento em que o exército na defensiva pode de novo tornar a entrar em linha e lançar um golpe bem dirigido que fará vacilar o assaltante sobre a sua posição desfavorável.

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